Último dia para ver: o filme inspirado em Malala que vai te emocionar e te deixar sem chão Divulgação / Newmarket Films

Último dia para ver: o filme inspirado em Malala que vai te emocionar e te deixar sem chão

É como atravessar um portal para uma realidade suspensa no tempo. Em “O Diário do Pescador”, não se trata apenas de retratar um vilarejo ignorado pelas políticas públicas — trata-se de encarar o fardo histórico da exclusão como ferida aberta. A obra de Enah Johnscott confronta o espectador com uma verdade incômoda: há territórios onde a civilização parece nunca ter se instaurado de fato, e não porque lhes falte contato com o mundo, mas porque o mundo insiste em lhes virar o rosto. Dizer que a mudança só virá de dentro é subestimar a complexidade: o que Johnscott propõe é mais sutil, mais doloroso e, paradoxalmente, mais esperançoso. Um processo que precisa, antes de tudo, ser de escuta — para então haver eco.

Na aparente simplicidade do cotidiano registrado em Menchum, região esquecida do noroeste camaronês, germina um conflito de forças ancestrais: a resistência cultural, o trauma coletivo e a brutalidade sistêmica. O diretor se aproxima de seus personagens sem folclore nem filtro, criando uma intimidade desconcertante com Ekah, uma menina que carrega nas costas não só os encargos domésticos deixados pela mãe ausente, mas também a expectativa de um futuro que não se atreve a sonhar em voz alta. Kang Quintus, no papel do pescador Solomon, é menos o centro da história e mais o obstáculo emocional que delimita os passos da filha, interpretada por uma atriz mirim cuja ausência de reconhecimento artístico acaba se tornando, ironicamente, espelho da própria narrativa. Ekah quer mais do que limpar peixes e carregar baldes. Ela quer o que deveria ser mínimo: acesso ao conhecimento, ao simbólico, à autonomia. E é justamente isso que seu pai teme — perder a filha como um dia perdeu a mulher.

O que se arma diante dos olhos do público é uma batalha invisível entre gerações: de um lado, a culpa envenenada de um homem esmagado por seus próprios ressentimentos; do outro, a urgência vital de uma criança que já compreende, com uma clareza avassaladora, que a ignorância não pode mais ser destino. A inserção da figura de Bihbih, professora de limites pedagógicos notórios, mas ainda assim símbolo de possibilidade, é o que detona o conflito: não por oferecer uma solução, mas por representar uma alternativa. Ekah reconhece nela uma passagem — e é justamente o reconhecimento do possível que move toda a sua rebeldia. Não há ingenuidade em sua luta; há, sim, a consciência precoce de que sua aldeia é um cárcere decorado com tradições que já não servem à vida. Solomon, por sua vez, recusa-se a romper com as estruturas que o definem — o que, em última instância, revela o medo de desaparecer.

O roteiro, em seus melhores momentos, abandona o didatismo e aposta na fricção pura entre desejo e realidade. Ainda que algumas subtramas divaguem sem rumo, há potência suficiente para manter o drama ancorado em sua protagonista. A chegada do tio Lucas, envolvido em uma dívida com o predador Sule, desloca a tensão para um campo ainda mais sombrio — o da violência como mecanismo de dominação íntima. Quando Ekah é arrastada à beira do colapso, violada por aqueles que deveriam protegê-la, o filme se despe de qualquer resquício de metáfora e se lança no território brutal do real. A indignação que transborda da tela não é efeito de mise-en-scène, mas sim reflexo da barbárie estrutural que ainda governa incontáveis infâncias ao redor do planeta. A dor da protagonista não é exceção — é regra, e é isso que choca.

A referência a Malala Youfsazai, embora dispensável pela força intrínseca da história, serve como ponte simbólica entre lutas geograficamente distantes, mas espiritualmente conectadas. A tentativa de estudar, em ambientes onde o estudo é tratado como ameaça, permanece sendo um ato político de altíssimo risco para muitas meninas. É nesse ponto que “O Diário do Pescador” alcança sua densidade máxima: ao desvelar a violência não como evento, mas como cotidiano. Ainda que tropece na trilha sonora e escorregue em alguns enquadramentos, há uma sensibilidade quase lírica na forma como o diretor filma os instantes mais corriqueiros — o mar sujo de Menchum, o olhar entardecido da menina, o silêncio das águas como testemunha cega das atrocidades que ali se repetem.

No desfecho, a presença de Faith Fadel, que encarna Ekah já adulta, não serve apenas como epílogo esperançoso. Ela é o vestígio de que o trauma não consumiu tudo. Seu sorriso, fugaz mas resplandecente, não é prêmio — é resistência. Num mundo em que a repetição da ignorância pode ser fatal, voltar ao óbvio é, paradoxalmente, um gesto de insurgência. A mensagem do filme não é apenas de denúncia; ela propõe, ainda que timidamente, uma reinvenção do olhar. E esse gesto, em si, já é um manifesto.

Ao erguer sua narrativa sobre um contexto negligenciado pela maior parte da indústria audiovisual global, o filme de Enah Johnscott torna-se um grito vindo do sul do mundo — um grito que não implora salvação, mas autonomia. Diferente de tantos olhares estrangeiros sobre a África, que ainda tentam colonizar mesmo ao homenagear, “O Diário do Pescador” escolhe ser o espelho interno de uma luta antiga, que ainda lateja. Como “Amina”, de Izu Ojukwu, ou “Eyimofe”, de Arie e Chuko Esiri, esta produção exige que o continente africano deixe de ser tratado como assunto e passe a ser sujeito. Que não se espere mais que o Ocidente narre sua história — e que, quando ela for contada, também haja espaço para sorrisos. Mesmo que no fim de um longo luto.

Filme: O Diário do Pescador
Diretor: Enah Johnscott
Ano: 2020
Gênero: Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★