Deus é o que quisermos que Ele seja, um Messias, um facínora, um filósofo desapegado, um peregrino numa vida curta e miserável de solidão, sordidez e brutalidade, como disse Thomas Hobbes (1588-1579) em seu “Leviatã” (1651). Religião e fé são variações de um mesmo tema, que alcança ainda o misticismo e, refinando-se um pouco mais a perspectiva, as relações entre Deus e o homem. Se a natureza divina se faz presente em todos os seres, animados ou inanimados, racionais ou não, como pensou Baruch Spinoza (1632-1677), o Criador seria também capaz de apresentar-se sob uma forma curiosamente ambígua, juntando num único ser a constituição sem falhas que o difere de qualquer outra entidade, e a matéria, perecível e dúbia, que conhecemos tão bem, apesar de a humanidade sempre ter preferido a ruína à metamorfose, o apocalipse à conversão.
A mágica em “A Paixão de Cristo” é fazer quem já acredita reforçar sua crença de que Jesus é o Filho do Homem, o único salvador, o caminho, a verdade e a vida, sem o qual não se chega ao Reino do Céu, ao passo que choca aqueles que deparam-se apenas por curiosidade. Mel Gibson compõe uma reconstituição emocionante da agonia das últimas doze horas do profeta do cristianismo, o que a etimologia latina clássica consagrou como “paixão”, termo de que a teologia cristã apropriou-se para se referir à disposição de Cristo de sofrer e entregar-se em sacrifício no madeiro por amor à humanidade, tudo para expiar nossos pecados.
Para contar o martírio de Jesus, Gibson e o corroteirista Benedict Fitzgerald concentram-se nas 14 Estações da Via Sacra — embora também recorram aqui e ali a passagens do Evangelho —, estratégia que aproxima quem assiste do que se passa na tela, afinal é raro encontrar alguém que nunca tenha visto a encenação do tormento e morte de Cristo em alguma quadra da vida. Uma crítica comum e algo razoável que se pode fazer ao trabalho do diretor é ter carregado nas tintas da violência, realçadas por computação gráfica impecável, como se quisesse dar uma lição de moral no público, e se foi mesmo essa a intenção de Gibson, ele conseguiu. Logo na primeira sequência, sente-se um frio na espinha frente a um Jesus acuado e tenso numa noite digna de filme de terror no Monte das Oliveiras, muito ciente de sua sorte, mas presa do humano medo com tudo o que viria a ser obrigado a suportar.
Gibson tem uma sacada ao personificar o diabo numa figura feminina, e Rosalinda Celentano desempenha o papel achando o tom exato de repugnância e sedução que Satanás decerto usa para levar as almas ao inferno. Reconhecem-se as falas mais célebres de Jesus naqueles instantes de profunda consternação e mergulho em si mesmo, como seu pedido inútil para que o Pai afastasse Dele aquele cálice de tristeza mortal, “mas só se fosse da Sua vontade”, e posteriormente, estando todas as coisas consumadas, o desespero do “Eli Eli Lamá Sabactâni”, ainda mais potente em aramaico, idioma usado com o latim dos soldados romanos durante as duas horas de projeção. A narrativa impõe-se por si só, claro, mas é impossível não fazer menção a Jim Caviezel, sem dúvida o ator certo para o personagem.
Talvez o único defeito de “A Paixão de Cristo” seja acabar de maneira abrupta, com a crucificação de Jesus, prometendo continuar a história em “A Paixão de Cristo: Ressurreição”, previsto para 2026, numa estratégia meio malandra que esticar o enredo e manter a audiência cativa. Uma vez que este realmente não é um filme comercial, teria sido melhor apostar num épico grandioso à “Os Dez Mandamentos” (1956), de Cecil B. DeMille (1881-1959). Assim mesmo, chorei, de novo.
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