Há filmes que erram na embalagem, mas acertam nas rachaduras da alma. “Um Divã para Dois” é um desses casos. Sob a aparência plastificada de uma comédia leve, embalada por canções genéricas e cores neutras que lembram do conforto estéril dos catálogos de streaming, se esconde um retrato inquietante — e por vezes doloroso — daquilo que se esfarela entre dois corpos que, há décadas, dividem a mesma cama sem realmente se tocarem. Ao contrário do que o marketing pode sugerir, o filme não se interessa por reconciliações açucaradas ou epifanias sentimentais. Seu verdadeiro interesse está nos interstícios da rotina, onde pulsa uma solidão abafada pelo hábito.
É nesse terreno incômodo que Meryl Streep faz uma performance devastadoramente contida. Não se trata de mais uma esposa frustrada à espera de atenção; ela é uma mulher que carrega, no silêncio de cada cena, o peso de anos em que sua presença foi aceita, mas raramente reconhecida. Sua atuação evita qualquer traço de histrionismo, apostando em uma intensidade sutil, quase invisível, mas absolutamente penetrante. Cada tentativa de contato, cada gesto interrompido, cada frase dita com doçura e medo, constrói o retrato de uma mulher à beira do desaparecimento emocional — mas que, paradoxalmente, decide resistir.
Tommy Lee Jones entrega talvez o papel mais desarmado de sua carreira. Em lugar do cinismo ranzinza que tantas vezes o consagrou, surge aqui um homem completamente alheio à própria erosão afetiva. O personagem não é cruel nem deliberadamente ausente — apenas se habituou ao vazio. Sua resistência ao afeto, seu constrangimento diante da intimidade e sua impaciência com qualquer tentativa de mudança revelam um sujeito que, de tanto evitar a dor, tornou-se incapaz de perceber a própria anestesia emocional. A grandeza de sua atuação está justamente nesse bloqueio: ele não se transforma, mas expõe, com brutal honestidade, a rigidez de quem confunde estabilidade com sobrevivência.
Entre eles, um terceiro elemento atua como catalisador silencioso: o terapeuta interpretado por Steve Carell, que compreende que sua função não é dizer, mas sustentar o que não se diz. Ele representa o espaço neutro onde o desconforto é permitido, e suas pausas cumprem mais função narrativa do que muitas falas. O triângulo formado por esses três corpos — um implorando por afeto, outro fugindo dele, e o terceiro mediando o abismo — serve como cenário para uma dança delicada entre o não-dito e o insuportável.
Infelizmente, nem tudo no filme acompanha a complexidade emocional das atuações. A direção opta por uma abordagem vacilante, que por vezes mina a densidade das cenas com escolhas artificiais, como o uso insistente de trilhas sonoras que sublinham sentimentos já perfeitamente captados pela câmera. Há momentos em que o som se impõe como explicação, traindo a força do que estava sendo construído em silêncio. Essa insegurança estilística sugere uma falta de confiança na maturidade do espectador, como se fosse necessário mastigar a emoção para que ela fosse assimilada.
Essa tensão estética — entre a potência do conteúdo e a hesitação da forma — torna o filme uma experiência desigual. Enquanto os protagonistas operam com rara delicadeza, a mise-en-scène os contraria, tentando transformar em comédia aquilo que é, na essência, um drama sobre erosão afetiva e tentativa de resgate. E, mesmo assim, o que persiste é o que há de mais verdadeiro: a vulnerabilidade escancarada de duas pessoas tentando se reconectar depois de anos de silêncio confortável.
O filme não oferece uma resposta para o desgaste conjugal, mas em permite que ele seja visto sem camuflagem. Não há promessas de redenção, tampouco catarse. Há apenas o esforço brutal — e, por isso mesmo, profundamente humano — de reaprender a olhar o outro sem a armadura da indiferença. É nesse gesto que o filme encontra sua força: na coragem de retratar o amor não como paixão incendiária, mas como insistência cotidiana.
Não é a reconciliação que importa, e sim o reconhecimento de que o afeto, quando negligenciado por tempo demais, não desaparece — apenas muda de forma, tornando-se silêncio, distância e, às vezes, raiva. “Um Divã para Dois” talvez não seja tecnicamente irrepreensível, mas tem a grandeza dos filmes que ousam tocar em feridas reais, sem pressa de curá-las. E é justamente por não oferecer conforto fácil que se torna, paradoxalmente, tão necessário.
★★★★★★★★★★