A ficção americana, ao se debruçar sobre a pobreza, parece obcecada menos pela miséria em si do que pela promessa de superação que ela pode oferecer ao mercado do espetáculo. Existe um desconforto latente no modo como os Estados Unidos se enxergam quando o tema é o fracasso sistêmico — uma fissura que o cinema tenta suturar com narrativas de exceção. Em “As Vinhas da Ira”, John Ford suavizou a brutalidade do texto de Steinbeck, substituindo a decomposição da família Joad por uma centelha de esperança que pudesse ser digerida sem amargor. Décadas depois, “À Procura da Felicidade” recorre a estrutura semelhante: em vez de se deter nas engrenagens que esmagam os vulneráveis, prefere contar a história de quem, por milagre de esforço e sorte, escapa. Ao fazer isso, o filme protege o mito fundacional de que o fracasso é sempre um desvio individual, nunca uma engrenagem estrutural em funcionamento perfeito.
Essa narrativa não é apenas uma concessão estética: ela é profundamente ideológica. O protagonista Chris Gardner, interpretado por Will Smith com intensidade quase exaustiva, personifica o arquétipo do herói meritocrático — um homem de princípios, disciplinado, resiliente, injustiçado, mas nunca ressentido. Ele não questiona o sistema que o empurra à beira do abismo, apenas corre mais rápido do que a maioria para não cair. A trajetória de Gardner é moldada não como denúncia, mas como hagiografia. A escolha de silenciar as complexidades do abandono conjugal ou de naturalizar a concorrência entre estagiários famintos por uma única vaga transforma a pobreza em um rito iniciático, não em uma urgência política. Não se trata, portanto, de refletir sobre o porquê de milhões não conseguirem sair do lugar — mas de exibir um caso raro em que alguém conseguiu. E isso basta para alimentar a ilusão de que o sistema funciona.
No entanto, há um paradoxo instrutivo nesse tipo de fábula: ao buscar inspirar, ela revela sem querer a anatomia de uma sociedade que precisa glorificar o esforço individual porque se recusa a assumir responsabilidade coletiva. O espectador acompanha Gardner e seu filho de abrigo em abrigo, partilha o desespero diante do despejo, mas é convidado a acreditar que tudo aquilo é passageiro — desde que se trabalhe o suficiente. É uma empatia condicionada, com data de validade, que só se sustenta porque, no fim, o herói vence. Essa vitória, entretanto, não é disruptiva: ela reafirma o status quo ao premiar quem joga segundo as regras, mesmo quando essas regras são desumanas. A pobreza, nesse contexto, não é uma violência contínua, mas um teste de resistência — e quem desaba diante dele simplesmente não estava à altura.
Talvez a maior ironia dessa estrutura esteja na maneira como ela encena a proximidade da classe média com o colapso sem admitir que isso é uma característica do sistema, não uma anomalia. Gardner não é um marginal, mas um homem com formação, inteligência e princípios — exatamente o tipo que o público imagina que jamais deveria viver na rua. A comoção só se instala porque o protagonista se parece demais com o espectador. Quando a miséria toca alguém “improvável”, ela se torna mais chocante, o que evidencia o quanto naturalizamos a exclusão de milhões que sequer entram em cena. É nesse ponto que a ficção revela mais do que pretende: ao tentar consolar, denuncia o quanto é frágil o pacto social que vende estabilidade como recompensa ao mérito. “À Procura da Felicidade” emociona não porque propõe justiça, mas porque disfarça o abismo com um salto que poucos poderiam repetir.
Esse tipo de narrativa, embora envolvente, cumpre uma função disciplinadora. O espectador, após assistir a duas horas de sofrimento e superação, sai com a convicção de que o fracasso é sempre pessoal e, portanto, evitável. A máquina ideológica da meritocracia se fortalece não com discursos, mas com exemplos de exceção transformados em regra. O que está em jogo não é apenas a história de Gardner, mas a neutralização de qualquer impulso crítico que questione por que tantos outros, igualmente esforçados, continuam invisíveis. É um cinema que oferece consolo, mas cobra caro por ele: o preço é a abdicação do pensamento crítico em nome de uma esperança individualizada. E, enquanto isso, como nos lembra Steinbeck em sua versão sem filtros, há quem continue vivendo, apesar de tudo — não por ter vencido o sistema, mas por insistir em existir dentro dele.
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