O romance mais grotesco da Netflix virou obsessão de Tarantino — e ninguém entende por quê Divulgação / Neon

O romance mais grotesco da Netflix virou obsessão de Tarantino — e ninguém entende por quê

Num cenário onde as leis do convívio foram substituídas por impulsos de sobrevivência e delírio, “Amores Canibais” ergue um panorama que não retrata um futuro improvável, mas a cristalização brutal de impulsos já fermentados no presente. A cineasta Ana Lily Amirpour não desenha um mundo devastado pela escassez de recursos — ela constrói, com precisão desconcertante, uma arena onde a escassez é moral, afetiva, simbólica. Ao lançar Arlen ao deserto, não apenas geográfico, mas também ético e identitário, a narrativa evoca um ritual de exílio contemporâneo, no qual o sujeito expulso da ordem social precisa forjar sua própria gramática de resistência. O muro que se fecha atrás de Arlen não é apenas metáfora de políticas segregadoras: é a demarcação de um não-lugar, onde os códigos que sustentavam alguma aparência de civilização já ruíram, e o que resta é a experimentação crua do caos como regra.

A travessia de Arlen, marcada pela mutilação literal — braços e pernas arrancados como aviso e ritual de iniciação —, opera como um testamento da brutalidade ordinária que esse mundo impõe. Não se trata apenas de violência gráfica, mas da materialização de um pacto sombrio em que corpos são moeda, e vínculos se formam sobre os escombros do medo. Em Comfort, a cidade fantasma regida por um traficante que distribui alívio com estética de culto, o grotesco é travestido de paz provisória. E quando Arlen cruza o caminho de Miami Man, a lógica se embaralha de modo ainda mais inquietante: ela sequestra a filha do canibal que a mutilou, mata uma mulher negra e depois assume o papel de cuidadora da criança, enquanto estabelece um vínculo afetivo com o algoz. Nada nessa sequência sugere redenção. Tudo aponta para a complexidade de um enredo que se recusa a oferecer respostas fáceis. Arlen, como o filme, é um organismo contraditório — simultaneamente vítima, algoz, salvadora e instrumento de uma fábula que dilacera certezas morais.

A suposta história de amor que se insinua entre Arlen e Miami Man não floresce da superação, mas do reconhecimento mútuo de perdas que já não têm onde cicatrizar. Ela não representa um reencontro com o humano, mas sim um pacto entre ruínas, costurado por uma ética instintiva que beira a selvageria e, paradoxalmente, oferece algum vestígio de sentido. Jason Momoa, na pele de um imigrante canibal cuja brutalidade não anula a dimensão emocional, encarna um paradoxo latente: é um homem que devora outros para alimentar sua filha, mas cuja dor silenciosa o torna mais íntegro que qualquer figura de autoridade anterior. A performance de Momoa, surpreendentemente contida, adiciona camadas de tensão que confrontam a plateia com uma pergunta desconfortável: o que, afinal, define nossa humanidade quando os parâmetros civilizatórios evaporam? Nesse universo onde até mesmo a lógica de justiça se dissolve, os afetos ganham contornos ambíguos, e cada gesto carrega um peso que escapa às categorias morais usuais.

A força de “Amores Canibais” reside na recusa a organizar sua selvageria em um discurso estruturado. Amirpour tensiona o cinema ao não oferecer catarse, mas um espelho estilhaçado onde o espectador vislumbra sua própria cumplicidade com o absurdo. A estética do filme — feita de destroços, aviões abandonados e figurinos improvisados — parece exalar os odores de um mundo que já morreu, mas insiste em repetir-se. A trilha sonora resgata hits esquecidos dos anos 1980 e 1990 como se fosse possível, através da nostalgia pop, anestesiar a decomposição ao redor. No entanto, a trilha não suaviza; ela ironiza. Cada acorde de Boy George ou Ace of Base funciona como uma cápsula de memória deslocada, projetada sobre um cenário onde os escombros não dizem mais respeito apenas à paisagem, mas à subjetividade dos que ali restaram. Os personagens secundários — o eremita mudo de Jim Carrey, o déspota de Keanu Reeves, o grunhido inarticulado de Giovanni Ribisi — compõem um coro de espectros cujas presenças desafiam qualquer classificação.

Há, no centro de tudo, uma recusa obstinada a oferecer ao público qualquer tipo de consolo. E é exatamente nesse desconforto que o filme se agiganta. “Amores Canibais” não quer ser consumido com facilidade, porque está menos interessado em narrar uma distopia do que em escancarar as engrenagens invisíveis que sustentam o mundo dito normal. É um delírio controlado, onde cada escolha narrativa parece lançar uma interrogação incômoda sobre os limites da empatia, os mecanismos da dominação e a natureza voraz do desejo. Ao final, o que permanece não é a tentativa de entender o enredo, mas a sensação de que o espectador também foi lançado ao deserto, sem roteiro, sem bússola, apenas com os próprios impulsos à flor da pele. E talvez seja exatamente essa a intenção: desprogramar o olhar, corroer as convenções, e deixar no paladar uma memória de carne crua que não se digere com facilidade.

Filme: Amores Canibais
Diretor: Ana Lily Amirpour
Ano: 2016
Gênero: Ação/Mistério/Terror
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★