Martin Scorsese convenceu Joe Pesci a retornar da aposentadoria para esse último filme, na Netflix Divulgação / Netflix

Martin Scorsese convenceu Joe Pesci a retornar da aposentadoria para esse último filme, na Netflix

Martin Scorsese, em “O Irlandês”, não apenas revisita o universo da máfia americana — ele o exuma. A câmera não é mais cúmplice da glória dos crimes, mas testemunha discreta de um passado que apodrece em silêncio. Aqui, o glamour antes associado à vida dos gângsteres se dissolve numa névoa de arrependimento, solidão e fim. Scorsese ergue uma elegia devastadora aos homens que confundiram lealdade com obediência cega, e poder com permanência.

Frank Sheeran, vivido por um Robert De Niro contido, quase opaco, é um executor sem paixão, um peão eficiente cuja tragédia é não perceber o preço até que tudo esteja perdido. A brutalidade com que elimina amigos e desafetos não encontra eco em remorso — apenas em um vazio crescente, que o consome devagar. Sheeran não é um herói trágico; é um fantasma que sobrevive ao próprio mito, condenado a vagar entre corredores de asilo e túmulos esquecidos.

A obra desmonta com habilidade os pilares que sustentaram filmes como “Os Bons Companheiros” ou “Cassino”. A violência está desprovida de estética; o tempo, implacável, corrói a virilidade e a arrogância desses homens. Joe Pesci, com sua contenção milimétrica, encarna Russell Bufalino como uma presença gélida, calculista, que reina não pelo medo explícito, mas pela manipulação sutil. Já Al Pacino entrega um Jimmy Hoffa vibrante, mas condenado — sua recusa em se submeter ao novo equilíbrio de forças sela seu destino com a força inevitável de uma tragédia grega.

Não há catarse, nem redenção. O tempo é o verdadeiro algoz. A juventude, digitalmente reconstruída, escorrega diante dos olhos como ilusão — um truque técnico que reforça o peso da velhice real, irreversível. A cena final, com Sheeran pedindo que a porta de seu quarto permaneça entreaberta, é um apelo mudo por companhia, mas também um gesto de entrega: ele sabe que ninguém virá.

Scorsese não julga, mas tampouco absolve. Seu olhar é de quem testemunhou a ascensão e queda de uma era — e entende que, ao fim, tudo que resta é o silêncio. “O Irlandês” não é apenas sobre a máfia, mas sobre o homem diante do espelho, encarando o que restou depois que a glória, os amigos e até os inimigos desapareceram. É uma meditação fúnebre sobre o tempo, a memória e o que significa, afinal, viver para contar a história — quando já não há ninguém para ouvir.

Filme: O Irlandês
Diretor: Martin Scorsese
Ano: 2019
Gênero: Biografia/Crime/Drama/Épico/Thriller
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★