Filme que fez as pessoas desmaiarem e vomitarem nos cinemas é também maior bilheteria de língua não inglesa da história, na Netflix Divulgação / Icon Productions

Filme que fez as pessoas desmaiarem e vomitarem nos cinemas é também maior bilheteria de língua não inglesa da história, na Netflix

Mel Gibson não filmou “A Paixão de Cristo” como quem deseja contar uma história — ele a esculpiu como quem escava uma ferida. A escolha de retratar, com obsessiva minúcia, os momentos finais da vida de Jesus vai bem além de um exercício devocional ou histórico. O filme não sugere empatia; exige confronto. Com o idioma original da época e uma câmera que se recusa a desviar o olhar da tortura, o longa expõe um corpo desfigurado como ícone da fé, rasgando o verniz estético que usualmente envolve narrativas religiosas e substituindo-o por carne aberta, ossos expostos e silêncio forçado. Não há misericórdia na condução. Tampouco há distanciamento. O espectador é arrastado para dentro da agonia, convocado a uma experiência radical que mistura arte, dor e fé num ritual imagético sem precedentes.

Essa radicalidade dividiu opiniões e inflamou debates. Para alguns críticos, a visceralidade com que a dor é encenada seria uma indulgência gratuita à violência, quase uma pornografia da flagelação. Para outros, a brutalidade não é excesso, mas fidelidade. É justamente por não atenuar a monstruosidade da execução que o filme subverte as expectativas e atinge sua potência: ao eliminar o conforto das metáforas, Gibson transforma a paixão em realidade tangível, insuportável e irredutível. O que incomoda, no fundo, não é a violência em si, mas a ausência de subterfúgios que a edulcorem. A violência aqui não é estilizada, celebrada ou relativizada. É exposta como abismo moral, como espelho de uma humanidade capaz de condenar a bondade à morte lenta.

Curiosamente, a repulsa que o filme provoca revela um paradoxo da sensibilidade contemporânea: convivemos pacificamente com a barbárie enquanto ela se apresenta sob a forma de espetáculo, como nos carnavais sangrentos de Tarantino ou nas batalhas coreografadas de superproduções, mas recuamos quando o sofrimento deixa de entreter e começa a interpelar. O incômodo diante do Cristo mutilado talvez revele menos sobre a obra e mais sobre o público. A pergunta que o filme lança — “O que você vê quando olha para essa dor?” — não admite respostas neutras. O desconforto gerado é o próprio motor da narrativa.

Ainda assim, há lacunas estruturais que não passam despercebidas. A opção por condensar a ressurreição em uma sequência quase simbólica, relegada a poucos segundos, desnivela a trajetória teológica do filme. Para muitos fiéis, a vitória sobre a morte é o núcleo da fé cristã – e sua ausência enfraquece a potência do sacrifício. A crucificação, isolada, corre o risco de ser lida como fim em si mesma, e não como parte de um arco maior que envolve redenção. Gibson, ao optar por um recorte extremo, sacrifica a totalidade em nome da intensidade. Não se trata, porém, de um erro narrativo, mas de uma escolha deliberada: o foco está na entrega, não na glória. O Calvário não é etapa; é clímax.

Essa decisão narrativa, aliada ao rigor estético que evoca pinturas renascentistas e ícones religiosos, traz à obra uma densidade simbólica que a afasta tanto do proselitismo quanto do entretenimento puro. Há uma inquietante beleza nas composições visuais — não porque suavizem a dor, mas porque a eternizam. Cada quadro parece esculpido para permanecer na retina como cicatriz, e não como imagem passageira. Não há catarse, apenas suspensão. E isso redefine o papel do espectador, que deixa de ser consumidor passivo para se tornar parte de uma liturgia fílmica.

As acusações de antissemitismo, embora recorrentes, merecem ser examinadas com mais rigor. Reduzir a obra a uma hostilidade religiosa simplista ignora o contexto histórico retratado, assim como a composição étnica dos personagens envolvidos. A leitura apressada do filme como peça de propaganda ideológica tende a ignorar as complexidades internas da narrativa e sua ambiguidade moral. A violência não é atribuída a um povo específico, mas ao poder eclesiástico corrompido, à covardia política e à natureza humana em sua expressão mais crua. A responsabilidade é coletiva  — e isso torna a crítica ainda mais incômoda.

Mais do que uma história sobre fé, “A Paixão de Cristo” é uma experiência que testa os limites do olhar e da crença. Não há concessões dramáticas, nem personagens destinados a aliviar o peso da jornada. Tudo está à serviço de uma única pergunta: até onde vai o amor que se entrega ao sofrimento? A resposta não está no texto, mas no silêncio que o filme deixa após seus créditos. Um silêncio que, para muitos, fala mais do que qualquer homilia. Para outros, é apenas um ruído incômodo que desejam esquecer. A polarização em torno da obra é, talvez, seu maior triunfo  — pois revela que o cinema ainda pode ser campo de batalha para dilemas éticos e ontológicos.

Não é exagero dizer que “A Paixão de Cristo” institui uma nova gramática da representação do sagrado no cinema: uma que rejeita a suavização, o simbolismo fácil e a estética do conforto. Em seu lugar, propõe a brutalidade como revelação e a dor como linguagem. Se há beleza no filme, ela nasce da coragem de não olhar para o lado. E se há fé, ela não se manifesta em dogmas, mas na aceitação de que talvez amar o que é despedaçado seja o ato mais difícil — e mais divino — de todos.

Filme: Paixão de Cristo
Diretor: Mel Gibson
Ano: 2004
Gênero: Drama/Épico
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★