Últimos dias para ver no Prime Video o filme que venceu 7 Oscars em 2024 e já é considerado um dos maiores da história do cinema Divulgação / Universal Pictures

Últimos dias para ver no Prime Video o filme que venceu 7 Oscars em 2024 e já é considerado um dos maiores da história do cinema

Durante os três minutos finais de “Oppenheimer”, o som do mundo parece ter sido retirado à força, como se a própria realidade vacilasse diante da devastação potencial contida em um único homem. Christopher Nolan compreende com exatidão que o maior horror não está na explosão em si, mas na permanência silenciosa que a sucede — uma reverberação moral que atravessa gerações. Assim como David Lynch alude em “Twin Peaks: O Retorno” à bomba como um estopim metafísico da corrupção humana, Nolan constrói um tratado visual onde a ciência se torna porta de entrada para um abismo ético. A associação não é casual. Se a arte de Lynch vislumbra o mal como intrusão, Nolan o reconhece como criação consciente, forjada em laboratório e batizada com a promessa de encerrar todas as guerras. O nascimento da era atômica, nesse contexto, não marca apenas um avanço tecnológico — mas um novo pacto com o poder de aniquilar o próprio juízo.

A estrutura narrativa escolhida para conduzir essa reflexão não busca linearidade, mas estranhamento. “Oppenheimer” opera em múltiplos tempos, cruzando linhas de julgamento e memória que se entrelaçam como partículas em colisão. A alternância entre cor e preto-e-branco não é recurso estético, mas tensão dramática que escancara o contraste entre o idealismo do cientista e a máquina política que o esmaga. Os depoimentos em comitês, repletos de silêncios mais eloquentes do que as acusações, revelam não apenas o colapso de um homem público, mas a falência de uma nação incapaz de lidar com os monstros que criou. Oppenheimer não é apenas investigado: ele é destituído de sua própria narrativa. A montagem nervosa de Jennifer Lame e a trilha de Ludwig Göransson contribuem para essa sensação de vertigem constante, como se o próprio filme experimentasse a instabilidade quântica que seu protagonista ajudou a formalizar.

Cillian Murphy conduz essa espiral com um domínio assombroso. A contenção de sua interpretação não representa frieza, mas uma combustão interna prestes a escapar. Seus olhos — ora opacos, ora incandescentes — carregam o peso de um conhecimento que jamais poderá ser desinventado. Quando diz “sinto como se tivesse sangue nas mãos”, não se refere apenas às vítimas de Hiroshima e Nagasaki, mas à própria contaminação de sua consciência. Há nele a clareza de que o intelecto, descolado do juízo ético, é uma arma em si. E se sua trajetória parece encontrar um antagonista em Lewis Strauss, interpretado por um Robert Downey Jr. em estado de graça, é porque ambos representam extremos de uma equação moral: o cálculo estratégico contra o dilema existencial. Enquanto um manipula audiências, o outro tenta articular o indizível — e perde.

Ao redor dessa colisão de vontades, orbitam figuras femininas tratadas com menor profundidade, mas não sem importância. Jean Tatlock e Kitty Oppenheimer, vividas por Florence Pugh e Emily Blunt, não são apenas estereótipos mal lapidados: são indícios do quanto a narrativa dominante negligencia espaços íntimos e dores colaterais. A fragilidade dessas representações não diminui a densidade do filme, mas tensiona sua integridade. A grandiosidade formal, ancorada pela fotografia expansiva de Hoyte Van Hoytema, corre o risco de eclipsar os vínculos humanos mais sutis — e talvez essa dissonância seja parte do próprio argumento: a ciência, quando elevada ao altar da supremacia bélica, desumaniza até seus mártires.

No centro de tudo permanece o paradoxo: Oppenheimer não é reduzido ao estigma de herói ou vilão. Ele é, antes, a personificação do impasse moderno — um arquétipo de Prometeu deformado, que não apenas entrega o fogo aos homens, mas aprende que será queimado por ele. A narrativa que Nolan tece é tanto uma crônica da queda quanto uma cartografia da responsabilidade. E ao evocar imagens como a da chuva espiralando em uma poça, o filme sugere que cada ação gera ondas que jamais cessam — reverberações que desestabilizam até o mais aparente dos silêncios. “Oppenheimer” não propõe julgamentos definitivos. Ele impõe uma vigília. E ao fim, o que resta não é redenção, mas uma pergunta em eco: e se o fim do mundo já tiver sido acionado — e ninguém percebeu?

Filme: Oppenheimer
Diretor: Christopher Nolan
Ano: 2023
Gênero: Drama/Suspense
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★