Donald John Trump é minha raposa-vermelha, tal como Luiz Inácio Lula da Silva foi a anta de Diogo Mainardi em 2007, ano em que o hoje ex-colunista da “Veja” publicou uma coletânea de crônicas com esse nome sobre as lambanças do petista durante o primeiro mandato. Políticos das mais diferentes colorações ideológicas acabam por equivaler-se em seus conchavos, em suas falcatruas, em sua falta de vergonha e, principalmente, em sua disposição de passar por cima de qualquer um para subir, como fizeram, de um jeito ou de outro, Trump, Richard Nixon (1913-1994), John F. Kennedy (1917-1963), Lula, Bolsonaro.
A verdadeira ideologia dos políticos é o talento para obter vantagens pessoais, e nisso o inquilino de turno da Casa Branca põe estes seus homólogos no chinelo, uma vez que têm no bolso boa parte dos bilionários do globo terrestre. Trump testa minha capacidade de arrumar-lhe novos insultos, desperta em mim meus instintos mais primitivos, como disse Roberto Jefferson de José Dirceu quando o mensalão deixou os tugúrios da Câmara e veio a público duas décadas atrás, mas não arrefeço. Minha inabalável ojeriza pelo 45º e 47º presidente dos Estados Unidos ganhou novo fôlego diante de “O Aprendiz”, a biografia desautorizada do magnata do mercado imobiliário americano que o roteiro de Gabriel Sherman compõe em quase todas as suas filigranas mais sórdidas. Há pouco no filme de Abbasi que eu já não soubesse, mas sempre resta na gota de sangue mais oculta um esboço de surpresa com a arrogância criminosa de Trump e seus asseclas, uma ameaça real à civilização.
Abbasi e Sherman voltam aos anos 1970, momento em que Trump aproxima-se de Roy Cohn (1927-1986), um advogado nova-iorquino famoso por ter sido assessor de Joseph McCarthy (1908-1957), que devotou a carreira política a perseguir comunistas, declarados e supostos. Esse temperamento persecutório forjou o modo de operar de Trump desde então, sendo ele mesmo um adepto da paranoia como meio de defesa e de ataque. Trump sempre foi um abstêmio convicto — e nisso, só nisso, preciso confessar, penso como ele — porque não gostava de admitir a hipótese de que pudesse estar fora do controle de sua própria vida. Contudo, enquanto precisou de Cohn deu para participar de festinhas regadas a burbom, cocaína e orgias homossexuais na casa do novo amigo, lances que “O Aprendiz” apresenta sem nenhuma censura.
O jovem Donald não gostou de descobrir quem Cohn era por baixo dos ternos Ermenegildo Zegna e do bronzeado (hábito que o futuro rei de Nova York também adotaria, trocando as lâmpadas ultravioleta por jatos de dihidroxiacetona), mas teve de engolir o orgulho e manter as aparências, ao menos até conseguir apoio para erguer seu hotel na 42nd Street, valendo-se do argumento estapafúrdio da isenção de tributos para empreendimentos que gerassem um certo lucro e um tal número de empregos. Sempre intelectualmente limitado, a intercessão de Cohn em meio a juízes, empresários e, por óbvio, congressistas foi imprescindível para que Trump chegasse lá, e Sebastian Stan e Jeremy Strong vão dividindo a cena até que Abbasi aprofunda-se também nos dramas pessoais de seu biografado, em alguma medida capazes de explicar o Trump de 2025.
O empresário ditou suas memórias ao jornalista Tony Schwartz, que as compilou no risível “Trump: A Arte da Negociação” (1987) — Trump teria escrito outra meia centena de publicações, todas crivadas de autoelogios, e revisadas pelos puxa-sacos da hora, como cansou de fazer com seu então aliado de modo até literal, a exemplo do que se assiste na sequência do banheiro do restaurante onde foi bater atrás do todo-poderoso Cohn. Mas seu esforço seria debalde se não conseguisse vender a imagem de homem sério e começasse a se desvencilhar da sombra de pecado de Cohn, um gay enrustido que não enganava ninguém numa América terrivelmente puritana, nem que para isso tivesse de caçar modelos na Quinta Avenida.
Foi assim que conheceu a checa Ivana Zelníčková (1949-2022), sua primeira esposa, e embora relativamente curtos, os segmentos que mostram o convívio matrimonial de Trump e Ivana, entre 1977 e 1989, quando ela descobriu a infidelidade do marido com a modelo e atriz Marla Maples, estarrecem. Cada vez mais assanhado com a construção da Trump Tower, Donald foi aos poucos asfixiando a esposa com “acusações” de desleixo com a própria aparência, outra das ideias fixas de Trump, o belo. Pode-se dizer que o casamento dos dois teria começado a acabar no último dia de 1977, quando nasceu Donald Trump Jr., e daí se arrastado até 30 de novembro de 1983, data da inauguração da sede de seu império.
Ivana resistiu outros seis anos, e a performance mediúnica de Maria Bakalova prepara o espectador para o término melancólico e truculento da vida em comum dos dois. À época, Ivana deu várias entrevistas contando do estupro de que fora vítima, mas por alguma razão nada misteriosa, desmentiu-se. Desde a década de 1970, pelo menos 26 mulheres acusaram Donald Trump de estupro, beijos e apalpadelas sem consentimento, inclusive Maples, com quem manteve um relacionamento cheio de idas e vindas, entre 1993 a 1999. Em 2005, Melania Knavs tornou-se a terceira senhora Trump. Ivana morrera de uma parada cardíaca depois de uma estranha “queda acidental” em seu apartamento em Manhattan, em 14 de julho de 2022, e Ray Cohn de complicações da aids, abandonado pelo pupilo mais ilustre, em 2 de agosto de 1986. Trump foi eleito pela primeira vez em 8 de novembro de 2016 e reeleito em 6 de novembro de 2024. Não cabe um terceiro mandato, mas…
Em comentários sobre o filme, título que alude ao programa da NBC que cristalizou Trump como um fenômeno da comunicação de massa, O Aprendiz, bem ao seu estilo, bateu abaixo da linha da cintura e disse que o longa de Abbasi de “sem classe e fajuto”, ou seja, uma reprodução perfeita do que é o homem mais poderoso do mundo. Trump, o porco, quer fazer do planeta seu chiqueiro particular, e talvez nem leve tanto tempo assim para que chafurdemos com ele. Portanto, é dever de todo cidadão decente deste planeta repudiá-lo com toda a veemência.
Continuarei fazendo a minha parte daqui do meu humilde teclado.
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