Se você já perdeu alguém, há um filme que precisa ver hoje — e ele acaba de chegar à Max Divulgação / Warner Bros.

Se você já perdeu alguém, há um filme que precisa ver hoje — e ele acaba de chegar à Max

Há diretores que envelhecem tentando emular os próprios acertos; Clint Eastwood faz o contrário. Em vez de buscar refúgio em fórmulas que o consagraram, desafia os limites de sua filmografia com a sobriedade de quem já não precisa provar nada. “Além da Vida” escapa de qualquer categoria simplista ao operar numa zona intermediária entre o visível e o insondável. Longe de qualquer solenidade metafísica, o filme se estrutura a partir de três trajetórias marcadas pela perda e pela suspensão do pertencimento: uma jornalista que sobrevive ao impossível, um médium exilado de si mesmo e um menino que tenta resgatar o vínculo com o irmão morto. A montagem inicial — um tsunami filmado com precisão implacável — é apenas o engodo inicial. A destruição em larga escala não dá lugar a uma narrativa de reconstrução heróica, mas a um silêncio desconfortável que serve de pano de fundo para investigações mais íntimas e dilacerantes.

Peter Morgan, roteirista acostumado a reconstruções históricas como em “A Rainha”, abandona o rigor documental para entregar um texto que recusa a lógica tradicional da exposição-conflito-clímax. Seu roteiro desloca o peso narrativo da verdade para a verossimilhança emocional. Os personagens não se debatem em busca de respostas transcendentes, mas de algum sentido que lhes devolva a sensação de estar no mundo. O que torna George — o médium vivido por Matt Damon — inquietante não é sua eventual habilidade paranormal, mas a fragilidade que o consome ao perceber que sua função parece ser a de oferecer consolo, não revelações. Ele não fornece provas, mas palavras que, por mais banais que pareçam, funcionam como um antídoto contra o desamparo. Essa tensão entre o que se quer crer e o que se pode suportar é o eixo em torno do qual o filme gira, sem pressa e sem a pretensão de resolver os enigmas que suscita.

“Além da Vida” sabe que os mortos, na verdade, são os que ficam. Ao acompanhar Marie — interpretada por Cécile de France com uma mistura de encantamento e inquietude — vemos que retornar da beira do fim pode ser mais perturbador do que cruzá-la. Sua obsessão por escrever sobre experiências de quase morte não é uma busca pela verdade, mas um mecanismo de sobrevivência psíquica. Ao confrontar relatos que se repetem — a luz branca, as figuras distantes, a paz inexplicável —, ela não quer respostas, mas partilhar a solidão que a experiência a impôs. Marcus, o menino que perdeu o irmão gêmeo, percorre o mesmo labirinto. Sua peregrinação por médiuns oportunistas não revela ingenuidade, mas uma fé rudimentar, aquela que se forma não por convicção espiritual, mas por necessidade vital. Eastwood filma essas jornadas sem cinismo, mas também sem concessões, como quem sabe que o desejo de acreditar nasce, muitas vezes, do medo de olhar para o vazio.

É tentador ver no filme uma tentativa de conciliação entre razão e transcendência, mas essa leitura seria redutora. O que Eastwood constrói é menos um tratado sobre o além do que uma meditação sobre o desconforto de viver sem garantias. Se há espiritualidade em “Além da Vida”, ela não é doutrinária nem metafísica, mas relacional. O que importa não é se George tem de fato acesso a outra dimensão, mas o efeito que sua presença provoca nos que o cercam. Seu toque não invoca espíritos; desarma defesas. A comunicação que se estabelece é menos com os mortos do que com o silêncio que os vivos acumulam em torno das suas perdas. Há uma dignidade rara na forma como o filme encena esse tipo de escuta — um espaço onde a linguagem é usada não para elucidar, mas para acolher.

A escolha por não ancorar o enredo em grandes revelações é o que torna “Além da Vida” tão resistente à categorização. O filme não busca comover pelo artifício, mas provocar ressonâncias sutis e duradouras. A relação entre George e Melanie, por exemplo, evita a trajetória clássica da redenção romântica. O que há ali é um impasse ético: ao tocar a mão dela, George capta um passado que preferiria não conhecer. Sua recusa em atravessar essa barreira não é covardia, mas um gesto de respeito. Bryce Dallas Howard traduz essa tensão com uma delicadeza desarmante, ao lado de Damon, que constrói seu personagem com um autocontrole tão refinado que cada silêncio se torna eloquente. Já Frankie McLaren, no papel de Marcus, encarna com uma naturalidade crua a lógica das crianças que, sem saberem nomear a dor, insistem em enfrentá-la.

Se o encontro final entre as três histórias parece forçado a alguns olhos, talvez seja porque exige do espectador uma suspensão que vai além da descrença narrativa: trata-se de aceitar que, na ficção como na vida, os pontos de contato mais profundos entre as pessoas frequentemente se dão por vias que a razão não consegue mapear. “Além da Vida” não promete transcendência; oferece proximidade. Ao contrário das tramas que miram o além como destino final, aqui o pós-morte funciona como espelho daquilo que mais tememos e mais desejamos em vida: sermos escutados, reconhecidos e, eventualmente, compreendidos. No olhar de Eastwood, o além não é um lugar — é uma ausência que nos habita. E talvez seja esse o gesto mais radical de um cineasta que, ao se debruçar sobre o que não se vê, entrega justamente aquilo que mais nos escapa: uma narrativa que não nos convence — nos interroga.

Filme: Além da Vida
Diretor: Clint Eastwood
Ano: 2010
Gênero: Drama/Fantasia/Romance
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★