Não é o mistério que move “A Grande Ilusão”, mas a instabilidade que ele imprime sobre tudo o que toca. Adaptada por Danny Brocklehurst a partir do universo de Harlan Coben, a minissérie se ergue como um tratado sobre desconfiança em estado bruto, onde a verdade é maleável e a lógica, opcional. Ao longo de seus oito episódios, conduzidos por David Moore e Nimer Rashed, o que se desenha não é apenas um thriller, mas um espelho despedaçado que reflete múltiplas versões da realidade — e todas são desconfortáveis. No centro desse quebra-cabeça, Maya Stern (Michelle Keegan) não busca respostas: ela tenta manter-se inteira. Ex-militar, professora de tiro, e recém-viúva de um homem executado à luz do dia, Maya atravessa um luto que não oferece consolo, apenas perguntas que se multiplicam como fractais.
O que parecia um crime encerrado, torna-se combustível para um abismo mais profundo quando Maya se depara com uma imagem impossível: o marido morto reaparece em um vídeo doméstico captado por uma babá eletrônica. A partir daí, a série deixa de lado qualquer compromisso com a estabilidade narrativa e se lança numa espiral de suposições. Alucinação? Conspiração? Fraude emocional? A dúvida não é apenas o motor da trama — ela é o próprio território em que os personagens se movem. Maya, em especial, abandona a figura clássica da heroína em busca de justiça e assume contornos mais ambíguos, guiada por uma desconfiança quase paranoica, que a empurra a cruzar limites éticos e psicológicos sem aviso prévio.
Mas o peso da narrativa não repousa apenas sobre o mistério central. “A Grande Ilusão” compreende que toda paranoia se alimenta de conexões ocultas — e por isso, tece em paralelo uma teia ainda mais incômoda. A irmã de Maya, Claire, foi assassinada meses antes. Um segundo crime, aparentemente desconexo, mas que reverbera com a mesma frequência inquieta do primeiro. A sensação é a de que algo — ou alguém — costura tragédias ao redor da protagonista com um zelo quase pessoal. A série insinua, mas jamais entrega de bandeja; prefere o jogo sinuoso, a hesitação calculada, apostando na incerteza como valor narrativo em si.
Neste xadrez de tensões cruzadas, o elenco não é mero adorno, mas vetor de significados. Judith (Joanna Lumley), a sogra psiquiatra de Maya, carrega veneno na voz e precisão no olhar. Sua presença é como uma ameaça vestida de verniz acadêmico — elegante, mas letal. Longe de ser uma vilã caricatural, Judith se instala na trama como um contraponto racional que, paradoxalmente, intensifica a sensação de loucura iminente. Já o detetive Sami Kierce (Adeel Akhtar) oferece uma fragilidade rara ao gênero: doente, exausto, mas ainda comprometido com a ideia de justiça, mesmo quando ela começa a parecer inalcançável. São personagens que não apenas ocupam espaço, mas carregam rachaduras que ressoam com as da própria narrativa.
À medida que os episódios avançam, a lógica se curva. A série se transforma em um jogo de distorções: Maya flagra uma babá tentando fugir com a verdade nos olhos, rasga as calças de um técnico diante de um grupo de crianças, confronta fantasmas com a mesma intensidade com que duvida de si mesma. Não há descanso. Cada cena parece desenhada para tensionar o laço entre percepção e realidade. O que se vê talvez não seja o que se vive — e é justamente esse descompasso que alimenta o desconforto, a angústia, a compulsão por respostas que jamais serão plenas.
A decisão de transplantar a ação para o Reino Unido, substituindo a Nova York do romance original, não é meramente estética. A ambientação britânica acentua a frieza e a contenção emocional dos personagens, reforçando a sensação de clausura. A estética visual é sóbria, mas incisiva, favorecendo a construção de uma atmosfera onde tudo parece milimetricamente controlado — e, justamente por isso, prestes a ruir. A tensão não vem de grandes explosões, mas do silêncio entre as palavras, dos olhares que duram um segundo além do necessário, das pausas que revelam mais do que os diálogos.
Seria fácil acusar “A Grande Ilusão” de esticar a verossimilhança, de investir demais em reviravoltas que beiram o absurdo. Mas essa crítica ignora o ponto: a série nunca pretendeu ser uma investigação realista. Sua ambição é outra — criar um terreno narrativo onde o exagero é um recurso, não um erro. A teatralidade é parte do pacto com o espectador: não se trata de reproduzir o mundo tal como é, mas de levá-lo até o limite da suspeita. Michelle Keegan entende essa proposta e entrega uma performance que rejeita o histrionismo em favor de uma contenção incômoda. Ela não busca a empatia fácil; prefere a opacidade que intriga e assusta.
Não é a resposta ao enigma que importa, mas o terreno emocional escavado no processo. “A Grande Ilusão” não fecha portas com firmeza — ela as deixa entreabertas, como quem sabe que o que realmente inquieta não é o que se explica, mas o que permanece fora de alcance. Se a série se sustenta ou desafia a lógica, torna-se questão secundária. Sua verdadeira façanha está em provar que, às vezes, o mais poderoso dos thrillers é aquele que nos obriga a questionar até mesmo a nitidez do que chamamos de realidade.
Série: A Grande Ilusão
Criação: Danny Brocklehurst
Ano: 2024
Gêneros: Thriller
Nota: 8/10