Menos espetáculo e velocidade: o thriller mais denso e sombrio de Guy Ritchie até o momento, no Prime Video e Telecine Divulgação / Miramax

Menos espetáculo e velocidade: o thriller mais denso e sombrio de Guy Ritchie até o momento, no Prime Video e Telecine

Há diretores de assinatura tão marcante que, mesmo diante de uma simples imagem congelada, já se intui quem está por trás da câmera. Guy Ritchie sempre pertenceu a esse seleto grupo, com sua estética acelerada, diálogos carregados de ironia e enredos entrelaçados por trapaceiros charmosos. No entanto, “Infiltrado” desmonta esse molde, mostrando um cineasta disposto a silenciar seus vícios e explorar os limites da contenção como virtude narrativa.É meno uma ruptura estilística e mais de uma transformação inquietante — como se Ritchie deixasse seu próprio reflexo nas sombras para experimentar outra gramática do suspense, mais densa, mais soturna, mais inquieta.

Inspirado no filme francês “Le Convoyeur”, o longa é uma reinterpretação radical, e não uma simples réplica anglófona. A jornada de Patrick “H” Hill (Jason Statham) se desenrola em um território moral rarefeito, onde a dor se camufla sob camadas de silêncio e a vingança se alimenta da rigidez de um homem que já não busca redenção, mas apenas a lógica fria da reparação. Ao abrir mão de sua tradicional pirotecnia visual, Ritchie entrega um thriller que pulsa em frequência baixa — uma espécie de sinfonia opaca composta por silêncios estratégicos, olhares suspensos e ameaças que pairam no ar como fumaça densa. Aqui, menos é mais — e esse menos pesa como chumbo.

A estrutura narrativa, quebrada em linhas temporais sobrepostas, exige do espectador não apenas atenção, mas uma disposição ativa para montar o quebra-cabeça psicológico de H., cujas motivações são reveladas em camadas meticulosamente orquestradas. Não é um jogo de esconde-esconde com a audiência, mas de uma construção metódica do vazio que habita o protagonista. Statham, longe do estereótipo do herói invulnerável, encarna com contenção milimétrica um homem deformado por uma perda irreparável. Seu silêncio não é vazio — é reverberação.

Ritchie, por sua vez, recusa qualquer inclinação ao exibicionismo técnico. Sua direção se torna quase invisível, como se abdicasse do controle explícito para permitir que a narrativa encontre seu próprio ritmo interno. Em vez de conduzir, ele observa. Essa estratégia se reflete também na fotografia austera de Alan Stewart, que transforma Los Angeles em um deserto urbano onde toda cor parece drenada, como se o próprio cenário fosse cúmplice da amargura do enredo. A trilha sonora de Christopher Benstead, grave e minimalista, atua como uma respiração subterrânea, conduzindo a tensão sem nunca escancará-la. O filme respira pelo que não mostra.

No elenco de apoio, há uma coesão silenciosa. Holt McCallany, com sua presença firme, equilibra a frieza de Statham com um certo pragmatismo melancólico, enquanto Scott Eastwood, como um antagonista metódico e cruel, traz à tona um tipo de vilania desprovida de charme — um psicopata sem carisma, mas com função dramática precisa. O retorno discreto de Josh Hartnett se encaixa como peça lateral de um tabuleiro onde cada movimento serve a uma engrenagem maior. Mesmo as subtramas que parecem momentaneamente tangenciais acabam construindo um cenário de paranoia e lealdade corrompida que reverbera até o último ato.

E é nesse ato final, um massacre meticulosamente orquestrado, que o filme atinge sua combustão. Não há glória no sangue derramado, nem catarse. O clímax não alivia; ele encerra com brutalidade um ciclo. Mais do que uma sequência de ação, o desfecho funciona como um epitáfio audiovisual de uma alma consumida pela ausência. É nesse momento que o filme exibe sua tese: a justiça, quando contaminada pela dor, se transforma em cálculo — e o cálculo é sempre frio.

Apesar de sua estrutura deliberadamente clássica e da previsibilidade de certos arcos narrativos, “Infiltrado” impressiona justamente na sobriedade com que trata o previsível. Há uma busca evidente por respeito à sua lógica interna. A disciplina formal, a parcimônia estilística e a direção quase ascética revelam um Guy Ritchie que não precisa mais gritar para ser ouvido — ele sussurra, e o impacto é maior.

“Infiltrado” não é uma ruptura isolada na carreira do diretor, mas uma transição sutil em direção a um cinema que prioriza densidade em detrimento do espetáculo. Ao abrir mão do sarcasmo como arma central e permitir que o silêncio ganhe protagonismo, Ritchie entrega não um filme menor, mas um filme mais grave, mais tenso, mais humano. E ao oferecer a Jason Statham um papel em que a força não vem do punho, mas do olhar opaco, ambos — ator e diretor — parecem ter atingido um ponto de maturidade rara: o da autoconsciência artística.

Esse filme, que poderia facilmente passar despercebido entre tantos thrillers genéricos, revela-se como uma espécie de manifesto involuntário de um criador que compreendeu o peso da contenção. E talvez esteja aí sua maior virtude: “Infiltrado” não se esforça para ser grandioso — ele simplesmente é. Porque, às vezes, o mais radical é não reinventar nada, mas sim tratar o conhecido com a gravidade que ele merece.

Filme: Infiltrado
Diretor: Guy Ritchie
Ano: 2021
Gênero: Ação/Crime/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★