Há filmes que se impõem não por suas respostas, mas pelas perguntas que deixam suspensas no ar — como ecos de uma memória que insiste em não desaparecer. “Todo Tempo Que Temos”, dirigido por John Crowley, não busca oferecer uma narrativa linear nem aplacar o desconforto do espectador com explicações mastigadas. Em vez disso, constrói-se como um delicado mosaico de instantes esparsos, de lapsos emocionais que resistem à cronologia tradicional e optam por desafiar a própria ideia de continuidade. O filme não se contenta em narrar um romance; ele tenta, com todas as suas imperfeições e silêncios, capturar o indizível — aquilo que escapa quando tentamos nomear o amor, a perda ou o medo do tempo.
Neste panorama emocional que se fragmenta como um espelho antigo, conhecemos Tobias e Almut — dois personagens que se cruzam como se o acaso fosse apenas o disfarce de um destino inevitável. A comparação com “Love Story”, embora válida em sua essência trágica, se revela superficial quando se observa o que realmente sustenta “Todo Tempos Que Temos”: não a trajetória previsível de um romance interrompido, mas a tentativa radical de traduzir a experiência humana como um fluxo descontínuo, quase sonambúlico, onde lembrança e pressentimento coexistem. A estrutura não linear, longe de ser um mero recurso estilístico, emerge como expressão da própria natureza do vínculo entre os protagonistas — um vínculo que não se constrói a partir de marcos objetivos, mas sim das marcas invisíveis que o tempo inscreve nos afetos.
Se há um risco nesse tipo de abordagem, ele não está no labirinto narrativo em si, mas na possibilidade de que, ao priorizar a forma sobre a emoção, o filme perca contato com o pulso de seus personagens. E, em certos momentos, é exatamente isso que acontece. Saltos temporais excessivamente bruscos diluem tensões que precisariam de maturação, como se o tempo, ao ser fraturado, levasse consigo parte da densidade emocional que deveria ser cultivada com paciência. Em cenas cruciais, decisões são tomadas sem que o espectador tenha experimentado, de fato, a gravidade do caminho percorrido até ali. Falta fôlego a algumas sequências que, em um filme de cadência mais contínua, talvez nos deixassem emocionalmente devastados.
No entanto, há uma força que impede o colapso total: a entrega emocional dos intérpretes. Andrew Garfield e Florence Pugh formam um duo que pulsa em harmonia discreta. Garfield imprime em Tobias uma suavidade quase extinta no cinema contemporâneo — uma masculinidade marcada não pela virilidade, mas pela disponibilidade afetiva, pela escuta, pela doçura silenciosa. Já Pugh, com sua capacidade de habitar emoções contraditórias sem jamais recorrer ao histrionismo, faz de Almut uma figura ao mesmo tempo indecifrável e profundamente humana. Mas é justamente nessa humanidade que o roteiro parece falhar: ao sugerir que sua paixão pela gastronomia molda sua identidade, o filme cria uma promessa que jamais cumpre. A cozinha é mencionada como pilar existencial de Almut, mas permanece apenas como ruído de fundo — uma ausência que empobrece o retrato de uma mulher que tenta equilibrar maternidade, vocação e fragilidade emocional num único corpo.
Essa lacuna revela um ponto nevrálgico do longa: sua hesitação em encarnar por completo os mundos interiores que propõe. Se Almut é mais do que uma mãe ou uma esposa, onde estão os gestos, os aromas, os sabores que a definem? O cinema já provou, em diversas ocasiões, que a culinária pode ser linguagem e resistência, metáfora e território. Ao desperdiçar essa dimensão, “Todo Tempo Que Temos” abandona a chance de fazer de Almut uma personagem mais concreta, mais complexa, mais inesquecível.
Mas o filme compensa essa fragilidade com a sensorialidade de suas pequenas intimidades. Há uma cena de parto que não recorre à dramatização excessiva nem à assepsia emocional: é crua, intensa e surpreendentemente serena. Em tempos em que o corpo feminino é tantas vezes transformado em espetáculo ou símbolo, essa sequência emerge como um gesto de resistência — a materialização de uma dor que também é afirmação de presença, de potência, de vida. O amor entre Tobias e Almut, nesses momentos de entrega física e emocional, ganha consistência. Não é um amor idealizado, tampouco tragicamente romântico: é um afeto cotidiano, que se revela nos gestos mais banais, nas piadas trocadas na penumbra do quarto, no silêncio cúmplice das manhãs difíceis.
Contudo, mesmo nos seus melhores instantes, o filme flerta com armadilhas contemporâneas que colocam em xeque sua integridade. O uso ostensivo de “product placement” — como no caso do cereal Weetabix, inserido em cena com um didatismo constrangedor — não apenas distrai, mas ameaça colapsar o pacto sensível entre espectador e narrativa. Quando o artifício mercadológico invade um momento de vulnerabilidade dos personagens, o que se quebra não é apenas a imersão; é a confiança de que aquilo que vemos tem alguma urgência existencial. A inserção parece menos uma ironia deliberada e mais uma concessão que trai a lógica interna do próprio filme.
E, ainda assim, seria injusto ignorar o que “Todo Tempo Que Temos” tenta — e em certa medida consegue — realizar. Ao evitar resoluções fáceis, ao recusar a linearidade confortável, ao não explodir em lágrimas fáceis ou trilhas sonoras manipuladoras, ele nos obriga a habitar um espaço menos previsível: o da vida real, onde o amor é ao mesmo tempo abrigo e abismo, e onde o tempo não nos ensina a perder, apenas nos arranca. O filme não se propõe a devastar o espectador, como “Love Story” fazia com seu romantismo trágico e inescapável. Em vez disso, prefere o esgotamento silencioso, a erosão gradual, a delicadeza que nos fere de leve — e, por isso mesmo, fere mais fundo.
O mérito final de “Todo Tempo Que Temos” talvez seja este: não nos oferecer respostas, nem clímax, nem promessas. Apenas a constatação melancólica de que amar, neste mundo fragmentado, é insistir em construir sentido onde tudo parece prestes a ruir. E, nesse gesto, talvez haja a forma mais autêntica de eternidade.
★★★★★★★★★★