O amor mais trágico do cinema: prepare o coração para o filme que Tarantino chamou de perfeito Divulgação / GEM Entertainment

O amor mais trágico do cinema: prepare o coração para o filme que Tarantino chamou de perfeito

Há encontros que nunca chegam a acontecer de fato, mas que moldam o destino com a mesma força de uma paixão vivida. “Amor à Flor da Pele”, de Wong Kar-Wai, não propõe uma história sobre adultério ou romance convencional; propõe uma experiência estética e emocional em que o amor se desenha pela ausência, pelo silêncio, pela hesitação contida entre gestos interrompidos. A beleza que pulsa na narrativa não está nas declarações nem nos beijos — que nunca ocorrem — mas nas frestas de uma convivência íntima sem desfecho, onde o desejo e a dor se sobrepõem como camadas de tinta que jamais secam.

Dois vizinhos se aproximam ao perceberem que seus respectivos cônjuges mantêm um caso. Em vez de embarcarem em uma vingança passional ou num novo relacionamento, Chow e Su constroem uma convivência silenciosa em que cada diálogo é um exercício de contenção e cada reencontro noturno, uma coreografia de renúncias. Wong Kar-Wai escolhe não revelar os rostos dos traidores, não por pudor, mas para afirmar que o verdadeiro centro da narrativa é essa intimidade suspensa entre dois solitários que se reconhecem no espelho das ausências. O tempo todo, os personagens estão à beira de algo — de uma confissão, de um toque, de uma ruptura — mas permanecem no limite, como se cruzar essa fronteira fosse destruir o único refúgio possível: o afeto puro, mas irrealizável.

A profissão de cada personagem — ele, editor de jornal; ela, secretária — reforça uma existência pragmática, que contrasta com a intensidade subterrânea de suas emoções. Já os cônjuges, sem nomes ou rostos, funcionam como espectros: existem apenas para alimentar a dor dos protagonistas e impulsionar a proximidade que se dá não por paixão imediata, mas pela partilha de um vazio. As cenas ganham densidade não por eventos narrativos, mas pela maneira como o espaço é habitado: corredores estreitos, escadas, molduras de portas que se fecham antes do que deveriam. Tudo ali é sugestão, nunca afirmação.

A obra engana quem espera viradas dramáticas. A grande revelação — a traição dos cônjuges — ocorre cedo, e a partir daí o que se desenvolve é um vínculo raro e ambíguo. Os personagens passam a simular confrontos com seus parceiros infiéis, ensaiando reações e cenários como atores que nunca sobem ao palco. Em suas interações, o que menos importa é o que dizem; o essencial está no que deixam de dizer, no que se cala porque a dor é mais eloquente quando sussurrada. Esse jogo de espelhamentos e silêncios constrói uma dramaturgia que desafia as convenções e encontra beleza justamente no que não se consuma.

Quando os olhares alheios começam a pressionar, quando os vizinhos cochicham e os colegas questionam, o laço construído com tanto cuidado começa a ruir. Não há escândalo, apenas um afastamento tão gradual quanto inevitável. E é justamente por nunca terem concretizado o que sentiam que Chow e Su passam a carregar uma dor mais profunda do que se tivessem vivido um romance clandestino. A memória, nesse caso, não preserva um arrependimento, mas a inquietação do que poderia ter sido. É essa ferida aberta, jamais cicatrizada, que Wong Kar-Wai transforma em matéria-prima estética.

O filme é um estudo sobre o tempo e suas armadilhas. Influenciado por “Hiroshima Meu Amor”, o diretor fragmenta a narrativa e transforma a montagem em uma extensão da memória: não-linear, subjetiva, repetitiva. As cores saturadas — vermelhos intensos e dourados nostálgicos — criam um ambiente de constante suspensão, onde o passado e o presente se confundem. Os planos fechados, os espelhos, os corredores estreitos acentuam a sensação de vigilância e reclusão, como se o próprio espectador estivesse espionando um segredo que jamais será revelado por inteiro. A câmera desliza lentamente, como que com respeito, recusando-se a invadir.

Não se trata de um filme de grandes diálogos, mas de pausas carregadas de sentido. Cada cena é depurada ao extremo, como se Wong Kar-Wai lapidasse o tempo em vez de imagens. A direção meticulosa é visível no longo processo de filmagem — quinze meses marcados por improvisos e mudanças de roteiro — o que resulta em uma fluidez surpreendente e uma naturalidade que nunca escorrega para o banal. Há rigor estético, mas também liberdade performática, permitindo que os atores habitem os silêncios com a mesma intensidade que habitariam grandes discursos.

“Amor à Flor da Pele” não tenta seduzir com soluções fáceis. Ele exige do espectador a disposição de se demorar no não-dito, de aceitar que há relações que são mais verdadeiras naquilo que nunca se concretizou. Em tempos de amores efêmeros e narrativas instantâneas, Wong Kar-Wai constrói uma ode à espera, à lembrança, àquilo que o tempo não levou porque nunca foi inteiramente vivido. Uma experiência que não se esgota no fim do filme, mas que ressoa muito depois — como uma música ouvida ao longe, cuja melodia, mesmo incompleta, se recusa a desaparecer.

Filme: Amor à Flor da Pele
Diretor: Wong Kar-wai
Ano: 2000
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★