Nos bastidores da memória coletiva, “Número 24” desestabiliza a lógica com que o cinema costuma traduzir conflitos armados, recusando o conforto das narrativas de bravura incontestável. O filme traça um itinerário tortuoso entre denúncia e contradição, examinando o ponto cego de obras que, sob o pretexto de condenar a guerra, flertam com sua espetacularização. Aqui, o inimigo não é apenas o regime opressor, mas também os mecanismos de representação que obscurecem as zonas cinzentas da história. Inspirado na trajetória do norueguês Gunnar Sønsteby, o longa conduz o espectador por dilemas que permanecem incômodos justamente por resistirem a qualquer arranjo de respostas fáceis.
A abertura se ancora na figura envelhecida de Sønsteby — interpretado com rigor por Erik Hivju — diante de um grupo de estudantes em Rjukan. O que parece uma palestra comemorativa se revela uma cápsula de tensão íntima. O gesto quase involuntário de mastigar madeira antecipa o que virá: não uma narrativa de glórias, mas um mergulho desconfortável em lembranças marcadas por decisões insuportáveis. Do salto ao passado emerge um jovem Gunnar (Sjur Vatne Brean), inicialmente discreto, mas decidido, cuja rotina é gradualmente desestabilizada por atos de censura, perseguição e barbárie. Os contrastes entre o cotidiano trivial e a escalada da repressão nazista não constroem uma epopéia de conversão heróica, e sim o processo silencioso de alguém que se recusa a ser cúmplice da apatia.
Ao ingressar na resistência, Sønsteby se torna um infiltrado que manuseia palavras e explosivos com a mesma seriedade. O codinome “Número 24” não adorna um protagonista carismático, mas revela um sujeito que opera nas frestas, distante da aura mítica típica de filmes de guerra. John Andreas Andersen — habituado a grandes produções como “Mar do Norte” — domina os códigos do suspense e imprime energia às sequências de sabotagem. No entanto, sua ambição vai além da adrenalina: em meio às ações clandestinas e execuções de colaboradores nazistas, o diretor confronta o público com uma pergunta devastadora, ainda que silenciosa: qual o preço da fidelidade a um ideal quando este exige que se elimine os próprios compatriotas?
É no momento em que a fala de Sønsteby é contestada por um dos estudantes — cujo familiar morreu em 1945 sob ordens dele — que o filme atinge sua vertigem ética. O embate entre honra nacional e dor pessoal transforma a narrativa em campo de batalha filosófico. O velho combatente já não comanda a história; ele é, agora, seu réu. O que estava emoldurado por um verniz de resistência se revela como um arquivo em disputa, onde a verdade se fragmenta em versões inconciliáveis. Nesse ponto, a trilha sonora surpreende ao convocar “Exit Music (For a Film)”, da banda Radiohead — decisão deliberadamente anacrônica que acirra o estranhamento e impede qualquer conforto nostálgico, obrigando o público a sentir a história como presente.
Embora grande parte da estrutura convoque elementos conhecidos de narrativas bélicas — como perseguições em becos gelados e explosões em fábricas de armamento —, o roteiro tensiona essas convenções ao iluminar as consequências invisíveis da guerra. A hesitação de Gunnar em executar noruegueses simpáticos ao nazismo não o absolve, mas expõe rachaduras que o distanciam da figura do herói intocável. Andersen recusa o pedestal biográfico e opta por uma anatomia da ambiguidade. O clímax emocional, situado não nos campos de batalha, mas nos diálogos entre gerações, reverbera mais alto do que qualquer estopim de pólvora: não porque grita, mas porque inquieta.
O aparato técnico do filme serve a esse desconforto: figurinos meticulosamente ancorados na década de 1940, ambientações cuja luz evoca opressão contínua e um desenho sonoro que amplifica o espaço entre ruído e silêncio como se cada respiro denunciasse o peso do que não é dito. Sjur Vatne Brean entrega um Gunnar lacunar, mais definido pelas fissuras do que pelas certezas, enquanto o embate dramático entre Erik Hivju e Flo Fagerli configura uma verdadeira arena retórica. A intensidade da troca entre eles evoca o rigor de um duelo moral, como os encenados em “12 Homens e uma Sentença”, ainda que aqui não haja júri a convencer — apenas verdades que se recusam a ser unânimes.
Ao atravessar seu desfecho, o filme confronta a ilusão de que há virtude garantida no ato de resistir. Se toda guerra implica escolhas trágicas, “Número 24” pergunta o que resta daquele que, ao lutar por justiça, viu-se compelido a atravessar a sombra da própria ética. O incômodo permanece: como lidar com filmes que se dedicam a criticar atrocidades passadas enquanto assistimos, hoje, à repetição de estratégias semelhantes sob novas bandeiras? Andersen não fornece consolo. Ele sugere que talvez o heroísmo não sobreviva ao escrutínio do tempo — e que a memória, ao contrário do que se imagina, é um terreno onde o silêncio e o ruído se enfrentam continuamente. É nesse terreno que “Número 24” finca sua bandeira — não como símbolo de vitória, mas como provocação incômoda à narrativa única.
★★★★★★★★★★