Mais assistida que Stranger Things e Round 6: a série que parou o mundo e ocupa o Top 1 da Netflix Divulgação / Netflix

Mais assistida que Stranger Things e Round 6: a série que parou o mundo e ocupa o Top 1 da Netflix

Charlie Brooker nunca escreveu sobre o futuro. Nem quando previu com precisão o culto às telas, nem quando projetou distopias algorítmicas que acabaram se concretizando antes do previsto. “Black Mirror” é, sempre foi, uma análise cirúrgica do presente, ainda que envernizada com tecnologias ligeiramente adiantadas no calendário. Em 2025, esse presente se tornou tão intrusivo e incômodo que a série não precisa mais especular — apenas documenta. A sétima temporada é, nesse sentido, a mais honesta e devastadora: não há como fugir para o amanhã, porque o agora já é distópico demais. E o primeiro episódio, “Pessoas Comuns”, é o epicentro dessa constatação — um retrato incômodo da servidão emocional e econômica a que nos submetemos para sobreviver num mundo que, supostamente, seria salvo pela tecnologia.

A premissa é simples e brutal: um casal de trabalhadores comuns, entre boletos e exaustão, tenta preservar sua dignidade diante da corrosão silenciosa da rotina. O diagnóstico de um tumor cerebral na esposa desencadeia a entrada da Rivermind, empresa que promete preservar sua vida por meios tecnológicos — desde que ela aceite se tornar uma vitrine ambulante de publicidade invasiva, monitorada por sensores corporais e exposta a anúncios sem cessar. O marido, preso à chantagem emocional do amor e da culpa, precisa manter o sistema funcionando a qualquer custo. Brooker não esconde seu juízo: a inteligência artificial, sob a máscara da salvação, é o novo mecanismo de exploração. Não substituímos a angústia humana — apenas a rentabilizamos.

Ao invés de apenas denunciar, o episódio tensiona o conceito de livre-arbítrio: o casal escolhe permanecer junto, mas essa escolha está cercada por algoritmos, contratos e armadilhas econômicas que minam qualquer noção real de autonomia. Não se trata mais de aceitar ou não uma tecnologia, mas de aceitar as consequências inescapáveis de já estarmos dentro dela. O que torna esse episódio particularmente perturbador é que, embora envolva procedimentos futuristas, tudo nele parece terrivelmente plausível — como se estivéssemos apenas aguardando o botão de ativação. O pessimismo aqui não é exagero criativo, mas um diagnóstico descritivo. A tragédia não vem do futuro. Ela já aconteceu.

Essa guinada para o cotidiano se expande ao longo da temporada, como um processo de decantação narrativa. Brooker opta por tensionar menos o “e se” e mais o “e agora?”. Em “Bête Noire”, por exemplo, a narrativa se ancora no Efeito Mandela e em falhas de memória coletiva para explorar o colapso da percepção individual num mundo onde a realidade é constantemente editada. A protagonista percebe alterações inquietantes em seu entorno, como se o tecido do tempo estivesse sendo reescrito — mas é a sociedade, não o tempo, que está sob manipulação. A paranoia, que antes era sintoma de futuros distantes, agora é parte integrante da experiência contemporânea. Brooker não propõe soluções — oferece espelhos.

“Hotel Reverie” retoma o debate sobre identidade e consciência artificial, mas desloca a questão para a indústria do entretenimento. Estúdios contratam IAs para reviver filmes clássicos com atores substituíveis, como se a nostalgia pudesse ser automatizada. Quando uma dessas figuras digitais percebe que não é real, a pergunta não é se ela sofre, mas se ela tem o direito de reivindicar humanidade. Brooker recusa qualquer resposta óbvia. A empatia, nesse contexto, se torna ambígua: ela pode ser um recurso técnico, calculado, programado para provocar resposta. E isso basta? O episódio reflete sobre o valor da emoção quando esta pode ser simulada com perfeição — e, por extensão, sobre o que ainda nos torna insubstituíveis.

Mesmo os episódios menos eficazes, como “Plaything”, têm função na tessitura crítica da temporada. Nele, um escritor é tragado por memórias e alucinações ligadas a um jogo dos anos 90, numa espécie de regressão sensorial que mistura vício digital e transtorno de identidade. O episódio falha ao transformar complexidade em caricatura, mas toca num ponto essencial: a nostalgia como armadilha. O passado idealizado se torna o novo vício, uma fuga tão potente quanto qualquer substância. Em uma época em que o retrô virou modelo de futuro, o que resta da experiência contemporânea? “Black Mirror”, até em seus tropeços, formula perguntas que incomodam mais do que explicam.

Essa ambiguidade crítica atinge seu ápice em “Eulogy”, um dos episódios mais maduros da série. Um homem é convidado a participar de um velório virtual e, para isso, precisa reencenar mentalmente os momentos vividos com a pessoa falecida. As imagens, no entanto, aparecem turvas, imprecisas — como se a memória estivesse deliberadamente sabotada. O passado, por mais que se tente reconstruí-lo com tecnologia, continua um terreno movediço. A culpa, o arrependimento e o luto não se resolvem por atalhos digitais. A dor permanece analógica, refratária ao controle algorítmico. É um episódio silencioso, mas incisivo, que demonstra como o progresso técnico não consegue maquiar nossas falências emocionais mais íntimas.

A temporada se encerra com “USS Callister: Beyond Infinity”, a primeira sequência direta da série. A tripulação digital, deixada para vagar num jogo infinito, agora precisa enfrentar jogadores reais que buscam destruir sua existência. A reflexão aqui não é apenas sobre a autonomia das consciências artificiais, mas sobre a indiferença humana ao sofrimento que não é reconhecido como “real”. Quando IAs se tornam autônomas, elas ganham direitos? Ou seguem condenadas à servidão porque sua dor não é registrada pelos sensores da empatia humana? Brooker contesta a ideia de que consciência exige biologia. Talvez baste sofrimento.

No conjunto, a sétima temporada de “Black Mirror” desmonta qualquer ilusão de neutralidade tecnológica. O que está em jogo não é a ficção, mas a recusa em admitir que nossa realidade já é um experimento contínuo de controle, manipulação e esvaziamento afetivo. A série não se propõe mais a antecipar futuros — ela documenta os escombros do presente. A inteligência artificial, aqui, não é personagem: é estrutura. E contra ela, resta pouco além da lucidez e, quem sabe, da recusa.

Talvez “Black Mirror” nunca tenha sido tão desconfortável porque nunca estivemos tão dentro do seu espelho. E não há botão de desligar.


Série: Black Mirror — 7ª temporada
Criação: Charlie Brooker
Ano: 2025
Gêneros: Ficção científica/Thriller 
Nota: 8/10