O romance mais delicado dos últimos 5 anos chegou ao Prime Video — e vai partir seu coração em silêncio Divulgação / Sony Pictures Home Entertainment

O romance mais delicado dos últimos 5 anos chegou ao Prime Video — e vai partir seu coração em silêncio

A maioria dos filmes parte da crença de que o espectador precisa ser conduzido por uma narrativa clara, com conflitos delineados, picos emocionais e resoluções bem marcadas. Em “Uma Bela Manhã”, Mia Hansen-Løve implode essa expectativa com a serenidade de quem compreende que a existência raramente se desenrola assim. Em vez de arquitetar acontecimentos, ela captura estados — um fluxo de emoções, hesitações e gestos interrompidos que, juntos, compõem um retrato de rara densidade. A personagem de Léa Seydoux não se presta ao papel de heroína nem à condição de vítima: é uma mulher no meio da vida, arrastada simultaneamente pelo colapso de um pai e pelo calor inesperado de um reencontro. O filme não finge organizar esse caos. Ele acolhe, sem hierarquizar, tanto a ternura exausta quanto o desejo abrupto, como se dissesse: é assim que se vive, entre interrupções.

Hansen-Løve não filma Sandra; ela a observa com precisão clínica e empatia desarmante. Ao recusar o conforto da progressão linear, a diretora estrutura seu filme como uma série de cortes no tempo que ecoam a fragmentação da própria protagonista. Um gesto inacabado, uma conversa interrompida, uma promessa deixada no ar — tudo reflete a lógica interna de alguém que não está em posição de construir narrativas, mas apenas de sobreviver ao que vem. Quando Clément ressurge na vida de Sandra, ele não representa um recomeço, mas um espasmo vital. É menos sobre romance e mais sobre reativar sentidos atrofiados. A câmera, quase sempre fixa, não investiga: aguarda. E é nesse tempo de espera, nessa recusa do clímax, que o filme encontra sua intensidade. Nada é oferecido de maneira explícita, e, por isso mesmo, tudo pulsa com verdade.

Essa contenção formal se torna ainda mais potente ao contrastar o silêncio do presente com os vestígios do passado. Georg, o pai de Sandra, não desaparece apenas como indivíduo: sua memória, seus livros, sua erudição se desfazem em tempo real. Mas a diretora resiste à tentação de dramatizar o declínio; prefere explorar a erosão pela via da ausência. Um simples comentário — “sinto-me mais próxima dele com seus livros do que com ele” — contém mais peso do que longas cenas de sofrimento explícito. É nesse deslocamento sutil que o filme se firma: não no registro do drama visível, mas na dor que ressoa no espaço entre os personagens, nas bibliotecas esvaziadas, nos olhos que não se fixam mais. Hansen-Løve nos força a lidar com o que permanece quando tudo o que organizava o mundo começa a falhar.

O vínculo entre Sandra e Clément — tão banal em seu contorno quanto disruptivo em sua função — é tecido a partir da tensão entre o que poderia ser e o que a realidade permite. Não há idealização possível. Ele está preso a outra vida, e ela não tem o privilégio da espera. Ainda assim, quando se encontram, o tempo parece suspenso, como se a intimidade física resgatasse algo anterior à linguagem. A cena em que ela recebe uma mensagem no trem e chora silenciosamente resume o poder do filme: capturar a transformação íntima no instante em que ela ainda não se traduziu em certeza. E é nesse terreno ambíguo, entre o impulso e a impossibilidade, que se constrói uma relação que jamais será redentora, mas é, inegavelmente, necessária. A sexualidade, filmada sem glamour e sem pudor, torna-se um espaço de escuta — do corpo, do desejo, da autonomia.

Ao se recusar a marcar moralmente seus personagens, a diretora entrega um tipo de realismo que não pede desculpas por sua complexidade. Em vez de oferecer respostas, ela trabalha com fricções. A protagonista, dividida entre ser filha, mãe e mulher, não resolve essas instâncias: apenas as experimenta. E é nessa permissão de falhar, nesse não saber como ser tudo ao mesmo tempo, que o filme alcança sua força mais íntima. Quando Sandra, em meio à rotina exaustiva, se permite rir da filha fingindo uma lesão para evitar a escola, o riso não é fuga — é sobrevivência. Momentos assim, aparentemente periféricos, acumulam camadas de humanidade que, somadas, revelam a dimensão ética do filme: dar valor àquilo que o cinema costuma desprezar por não ter função narrativa.

“Uma Bela Manhã” não é uma narrativa: é uma vivência. A cada corte, a cada recuo do olhar, o filme desenha uma ética da atenção, da escuta, da delicadeza diante do impermanente. Hansen-Løve não oferece uma lição, tampouco propõe uma solução. Sua ambição, muito mais rara, é confiar no espectador como alguém capaz de sustentar a ambiguidade. E talvez por isso o filme permaneça conosco mesmo após a tela escurecer: não por concluir algo, mas por nos confrontar com aquilo que se recusa a ser resolvido. É um cinema que, ao invés de organizar o mundo, nos convida a habitá-lo com mais honestidade.

Filme: Uma Bela Manhã
Diretor: Mia Hansen-Løve
Ano: 2022
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★