Não há obra literária mais complexa do que uma vida em contradição contínua. Mario Vargas Llosa, morto aos 89 anos, não se limitou a escrever sobre os impasses do poder, da moral ou da liberdade: ele os viveu. Foi o último sobrevivente do boom latino-americano, um candidato à presidência derrotado por um populista obscuro, um ex-marxista convertido ao liberalismo, um crítico das revoluções que amou e um homem que transformou suas rupturas — pessoais, políticas e estéticas — na espinha dorsal de uma literatura ao mesmo tempo desiludida e apaixonada.
Sua trajetória não foi a de um escritor que acompanhou o século 20 — foi a de alguém que o contestou desde dentro, sempre cético quanto aos consensos do momento, inclusive os seus. Ainda jovem, viu em Fidel Castro a encarnação do socialismo libertário com o qual sonhava. Doou sangue em Havana, visitou Cuba em seus anos de fervor e defendeu com convicção a promessa da Revolução. Mas quando Castro apoiou a repressão soviética à Primavera de Praga, Vargas Llosa rompeu com brutalidade. A partir dali, recusou-se a escrever qualquer linha que não refletisse sua consciência. A literatura deixava de ser instrumento de causa: tornava-se linguagem de dissenso.

É por isso que seus romances não são panfletos, mas investigações sobre o que resta do indivíduo quando ele se vê esmagado por crenças absolutas. Em “A Cidade e os Cachorros”, seu romance inaugural, o colégio militar torna-se laboratório de um autoritarismo que começa nos rituais mais triviais da masculinidade. Já em “Conversa na Catedral”, escrita anos depois, a estrutura fragmentada não é um capricho formal: é a única forma possível de representar um país em decomposição moral. O caos narrativo é o espelho do caos político — e a pergunta que move o romance (Em que momento o Peru se ferrou?) não exige resposta, apenas coragem para sustentá-la.
A crítica aos extremos se adensa ainda mais quando Vargas Llosa mergulha nos grandes delírios coletivos da América Latina. Em “A Guerra do Fim do Mundo”, inspirado em Canudos, desmonta a fé milenarista e o messianismo redentor com a mesma frieza com que, anos depois, retrataria o sadismo de Trujillo em “A Festa do Bode”. São romances ambiciosos, de fôlego enciclopédico, mas guiados por uma ética singular: não há redenção nos sistemas; só há escolhas frágeis feitas por sujeitos que tentam, em vão, escapar da mentira de uma verdade absoluta.
Mesmo seus livros mais leves, como “Tia Júlia e o Escrevinhador” ou “Pantaleão e as Visitadoras”, não escapam desse jogo entre estrutura e subversão. Por trás do humor, do erotismo e da metalinguagem, há sempre uma crítica velada aos dogmas — inclusive os sentimentais. Sua própria vida amorosa parecia recusar qualquer roteiro convencional: casou-se aos 19 com a tia por afinidade, separou-se e, anos depois, casou-se com a prima. Mais tarde, aos 79, terminou o segundo casamento para viver um romance com Isabel Preysler, ex-mulher de Julio Iglesias. Jamais defendeu esses atos como símbolos de liberdade. Simplesmente os viveu.

Sua incursão na política formal foi outro ato de inconformismo. Em 1990, em meio a uma crise econômica devastadora e ao terror do Sendero Luminoso, lançou-se candidato à presidência com uma agenda liberal radical. Foi acusado de elitismo, vaidade e falta de sensibilidade popular. E, de fato, perdeu para Alberto Fujimori — um engenheiro agrônomo desconhecido que prometia estabilidade aos setores marginalizados. Vargas Llosa entendeu rápido: “Na América Latina, preferimos promessas à realidade”. De volta ao exílio voluntário, escreveu “Lituma nos Andes”., um romance melancólico sobre a finitude da civilização e a persistência da barbárie. A política o rejeitara; a literatura o acolheu.
A consagração definitiva veio com o Nobel de Literatura em 2010 — que recebeu com ironia. “Foi um conto de fadas por uma semana e um pesadelo por um ano”, disse, sufocado pelas exigências públicas que o impediram de escrever. A fama, para ele, era uma forma de ruído. Importava-lhe mais a construção obsessiva de seus mundos ficcionais — que ele pesquisava com rigor quase jornalístico — do que o prestígio volátil que ela rendia. Por isso recusou o cargo de primeiro-ministro do Peru em 1984 e por isso manteve distância crítica de todos os campos ideológicos, da esquerda castrista à direita populista. Chegou a apoiar Jair Bolsonaro em 2022, não por afinidade, mas por repulsa a Lula. Foi incoerente? Certamente. Mas sempre deliberado.
John Updike, ao escrever sobre ele na “New Yorker”, definiu Vargas Llosa como um autor de imaginação imensa, capaz de descrever o constrangimento de um militante que teme cair de uma pilha de panfletos tanto quanto uma emboscada nos Andes. Em sua crítica a “História de Mayta”, observou algo raro: “É um dos poucos romances em que os personagens, mesmo no meio da luta armada, pegam resfriados”. Esse detalhe diz muito. A ficção de Vargas Llosa nunca esquece que o humano é feito de grandeza e de ridículo, de heroísmo e de fraqueza — e que nenhum projeto político tem o direito de ignorar isso.

Mesmo em seus últimos anos, seguiu escrevendo. “Travessuras da Menina Má”, “O Sonho do Celta”, “Tempos Duros”, “Dedico a Você Meu Silêncio” — todos lidam, à sua maneira, com os escombros das grandes crenças. Manteve também uma coluna incisiva no “El País”, criticou Chávez, Putin, Trump e o nacionalismo catalão. Em 2023, tornou-se o primeiro imortal da Academia Francesa que nunca escreveu em francês. Viveu entre Lima, Madrid, Paris e Londres, entre Duchamp e Faulkner, entre as bibliotecas e os estádios de futebol, entre a elegância de um liberal aristocrático e a inquietação de alguém que jamais se acomodou no papel de ícone.
Sua morte fecha uma era não apenas literária, mas ética. Vargas Llosa foi, talvez, o último intelectual latino-americano a levar a sério tanto a imaginação quanto a responsabilidade pública — sem sacrificar uma em nome da outra. Não era isento, nem desejava parecer neutro. Era movido por convicções que mudavam porque eram vividas até o limite. Sua literatura não é um refúgio contra o mundo — é um campo de batalha onde ideias, sentimentos e contradições disputam o direito de permanecer. Ler Vargas Llosa, agora, é mais do que reler um grande autor. É confrontar, de novo, o que o mundo faz com quem decide pensar com liberdade.