Mario Vargas Llosa morreu. E com ele, a última ilusão da América Latina

Mario Vargas Llosa morreu. E com ele, a última ilusão da América Latina

Não há obra literária mais complexa do que uma vida em contradição contínua. Mario Vargas Llosa, morto aos 89 anos, não se limitou a escrever sobre os impasses do poder, da moral ou da liberdade: ele os viveu. Foi o último sobrevivente do boom latino-americano, um candidato à presidência derrotado por um populista obscuro, um ex-marxista convertido ao liberalismo, um crítico das revoluções que amou e um homem que transformou suas rupturas — pessoais, políticas e estéticas — na espinha dorsal de uma literatura ao mesmo tempo desiludida e apaixonada.

Sua trajetória não foi a de um escritor que acompanhou o século 20 — foi a de alguém que o contestou desde dentro, sempre cético quanto aos consensos do momento, inclusive os seus. Ainda jovem, viu em Fidel Castro a encarnação do socialismo libertário com o qual sonhava. Doou sangue em Havana, visitou Cuba em seus anos de fervor e defendeu com convicção a promessa da Revolução. Mas quando Castro apoiou a repressão soviética à Primavera de Praga, Vargas Llosa rompeu com brutalidade. A partir dali, recusou-se a escrever qualquer linha que não refletisse sua consciência. A literatura deixava de ser instrumento de causa: tornava-se linguagem de dissenso.

A Cidade e os Cachorros
A cidade e os Cachorros, de Mario Vargas Llosa (Alfaguara, 376 páginas, tradução de Titan Jr. Samuel)

É por isso que seus romances não são panfletos, mas investigações sobre o que resta do indivíduo quando ele se vê esmagado por crenças absolutas. Em “A Cidade e os Cachorros”, seu romance inaugural, o colégio militar torna-se laboratório de um autoritarismo que começa nos rituais mais triviais da masculinidade. Já em “Conversa na Catedral”, escrita anos depois, a estrutura fragmentada não é um capricho formal: é a única forma possível de representar um país em decomposição moral. O caos narrativo é o espelho do caos político — e a pergunta que move o romance (Em que momento o Peru se ferrou?) não exige resposta, apenas coragem para sustentá-la.

A crítica aos extremos se adensa ainda mais quando Vargas Llosa mergulha nos grandes delírios coletivos da América Latina. Em “A Guerra do Fim do Mundo”, inspirado em Canudos, desmonta a fé milenarista e o messianismo redentor com a mesma frieza com que, anos depois, retrataria o sadismo de Trujillo em “A Festa do Bode”. São romances ambiciosos, de fôlego enciclopédico, mas guiados por uma ética singular: não há redenção nos sistemas; só há escolhas frágeis feitas por sujeitos que tentam, em vão, escapar da mentira de uma verdade absoluta.

Mesmo seus livros mais leves, como “Tia Júlia e o Escrevinhador” ou “Pantaleão e as Visitadoras”, não escapam desse jogo entre estrutura e subversão. Por trás do humor, do erotismo e da metalinguagem, há sempre uma crítica velada aos dogmas — inclusive os sentimentais. Sua própria vida amorosa parecia recusar qualquer roteiro convencional: casou-se aos 19 com a tia por afinidade, separou-se e, anos depois, casou-se com a prima. Mais tarde, aos 79, terminou o segundo casamento para viver um romance com Isabel Preysler, ex-mulher de Julio Iglesias. Jamais defendeu esses atos como símbolos de liberdade. Simplesmente os viveu.

Conversa na Catedral
Conversa no Catedral, de Mario Vargas Llosa (Alfaguara, 584 páginas, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman)

Sua incursão na política formal foi outro ato de inconformismo. Em 1990, em meio a uma crise econômica devastadora e ao terror do Sendero Luminoso, lançou-se candidato à presidência com uma agenda liberal radical. Foi acusado de elitismo, vaidade e falta de sensibilidade popular. E, de fato, perdeu para Alberto Fujimori — um engenheiro agrônomo desconhecido que prometia estabilidade aos setores marginalizados. Vargas Llosa entendeu rápido: “Na América Latina, preferimos promessas à realidade”. De volta ao exílio voluntário, escreveu “Lituma nos Andes”., um romance melancólico sobre a finitude da civilização e a persistência da barbárie. A política o rejeitara; a literatura o acolheu.

A consagração definitiva veio com o Nobel de Literatura em 2010 — que recebeu com ironia. “Foi um conto de fadas por uma semana e um pesadelo por um ano”, disse, sufocado pelas exigências públicas que o impediram de escrever. A fama, para ele, era uma forma de ruído. Importava-lhe mais a construção obsessiva de seus mundos ficcionais — que ele pesquisava com rigor quase jornalístico — do que o prestígio volátil que ela rendia. Por isso recusou o cargo de primeiro-ministro do Peru em 1984 e por isso manteve distância crítica de todos os campos ideológicos, da esquerda castrista à direita populista. Chegou a apoiar Jair Bolsonaro em 2022, não por afinidade, mas por repulsa a Lula. Foi incoerente? Certamente. Mas sempre deliberado.

John Updike, ao escrever sobre ele na “New Yorker”, definiu Vargas Llosa como um autor de imaginação imensa, capaz de descrever o constrangimento de um militante que teme cair de uma pilha de panfletos tanto quanto uma emboscada nos Andes. Em sua crítica a  “História de Mayta”, observou algo raro: “É um dos poucos romances em que os personagens, mesmo no meio da luta armada, pegam resfriados”. Esse detalhe diz muito. A ficção de Vargas Llosa nunca esquece que o humano é feito de grandeza e de ridículo, de heroísmo e de fraqueza — e que nenhum projeto político tem o direito de ignorar isso.

A Festa do Bode
A Festa do Bode, de Mario Vargas Llosa (Alfaguara, 432 páginas, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman)

Mesmo em seus últimos anos, seguiu escrevendo. “Travessuras da Menina Má”, “O Sonho do Celta”, “Tempos Duros”, “Dedico a Você Meu Silêncio” — todos lidam, à sua maneira, com os escombros das grandes crenças. Manteve também uma coluna incisiva no “El País”, criticou Chávez, Putin, Trump e o nacionalismo catalão. Em 2023, tornou-se o primeiro imortal da Academia Francesa que nunca escreveu em francês. Viveu entre Lima, Madrid, Paris e Londres, entre Duchamp e Faulkner, entre as bibliotecas e os estádios de futebol, entre a elegância de um liberal aristocrático e a inquietação de alguém que jamais se acomodou no papel de ícone.

Sua morte fecha uma era não apenas literária, mas ética. Vargas Llosa foi, talvez, o último intelectual latino-americano a levar a sério tanto a imaginação quanto a responsabilidade pública — sem sacrificar uma em nome da outra. Não era isento, nem desejava parecer neutro. Era movido por convicções que mudavam porque eram vividas até o limite. Sua literatura não é um refúgio contra o mundo — é um campo de batalha onde ideias, sentimentos e contradições disputam o direito de permanecer. Ler Vargas Llosa, agora, é mais do que reler um grande autor. É confrontar, de novo, o que o mundo faz com quem decide pensar com liberdade.

Carlos Willian Leite

Jornalista especializado em jornalismo cultural e enojornalismo, com foco na análise técnica de vinhos e na cobertura do mercado editorial e audiovisual, especialmente plataformas de streaming. É sócio da Eureka Comunicação, agência de gestão de crises e planejamento estratégico em redes sociais, e fundador da Bula Livros, dedicada à publicação de obras literárias contemporâneas e clássicas.