Em “A Verdade Pura”, Kenneth Branagh abandona o palco da grandiloquência para investigar um terreno muito mais desconfortável: o silêncio. Não o silêncio teatral entre falas, mas aquele que se instala quando as palavras já não bastam — nem para encantar plateias, nem para remediar os erros íntimos. A partir do incêndio do Globe Theatre, ponto de inflexão histórico e simbólico, o filme mergulha em um Shakespeare que não escreve mais, não cria mais, e talvez já não saiba existir fora da linguagem. Retirado para Stratford, o dramaturgo se depara com um espaço doméstico que não oferece consolo, mas uma espécie de tribunal emocional: a esposa Anne Hathaway e a filha Judith não o recebem como o gênio consagrado, mas como o pai ausente que retorna tarde demais.
O que Branagh propõe é menos uma cinebiografia e mais uma sondagem ética: o que resta de um homem quando o legado ofusca os vínculos? A estrutura fragmentada, feita de episódios quase meditativos, revela não apenas uma vida em ruínas, mas a dificuldade de reconstruí-la com sinceridade. A câmera, contemplativa e quase imóvel, parece hesitar junto ao protagonista, como se a narrativa desconfiasse da própria possibilidade de redenção. Há uma escolha deliberada por não dramatizar os conflitos — eles são deixados à margem, sussurrados em gestos, esvaziados de catarse. No entanto, essa mesma contenção, por vezes, esfria o drama que prometia ser visceral.
O roteiro, escrito por Ben Elton, pretende erguer uma hipótese afetiva sobre os últimos anos de Shakespeare, preenchendo com imaginação os vazios deixados pelos registros históricos. Mas ao tentar abordar simultaneamente temas como o luto pelo filho Hamnet, as fraturas familiares, a mágoa das filhas, os boatos sobre sua sexualidade e a sombra de um amor possivelmente não correspondido por Henry Wriothesley, o filme se dispersa. As camadas se sobrepõem sem se amalgamarem, e o resultado é uma sucessão de temas que ressoam mais pela ambição do que pela profundidade com que são tratados.
Entre os poucos momentos em que a linguagem volta a incendiar a tela, a cena entre Shakespeare e o conde de Southampton, vivido por Ian McKellen, se destaca como uma espécie de epifania tardia. É ali, sob a tensão implícita de uma afeição reprimida, que os versos dos sonetos se tornam carne: desejo, arrependimento, beleza e perda emergem como espectros do que nunca foi vivido plenamente. Esse instante isolado, porém, escancara a ausência de outros semelhantes ao longo do filme. O restante hesita — não por pudor, mas por uma timidez narrativa que evita o confronto direto com as feridas mais profundas do protagonista.
E ainda assim, há lampejos provocadores. A escolha de transformar Judith em uma mulher que desafia o conformismo de sua época — mesmo que em desacordo com a verossimilhança histórica — é uma tentativa de colocar Shakespeare diante de um espelho deformado, onde seu machismo implícito, sua obsessão com o legado masculino e sua negligência afetiva são finalmente revelados. A exigência de um neto homem como símbolo de continuidade expõe não apenas o desprezo inconsciente pelas mulheres ao redor, mas uma angústia existencial: o medo de que sua grandiosidade se dissolva com o tempo, como as cinzas do teatro que perdeu.
No entanto, essa tentativa de modernizar personagens e tensões históricas nem sempre escapa da armadilha do anacronismo. Em diversos momentos, os diálogos soam como inserções externas, vestindo personagens do século 17 com o vocabulário moral do presente. A escalação de Dench e McKellen — gigantes em atuação, mas deslocados quanto à idade e contexto de seus papéis — reforça essa dissonância. O filme oscila, então, entre dois impulsos contraditórios: o da fidelidade afetiva ao homem por trás do mito, e o da atualização ideológica de suas circunstâncias, como se tentasse resgatar Shakespeare das limitações do seu próprio tempo.
Talvez o maior acerto de “A Pura Verdade” esteja justamente em seu título ambíguo. O que é verdade quando tudo o que se tem são fragmentos? O filme se permite imaginar, mas não se ilude: seu Shakespeare não é um homem em busca de redenção heroica, mas alguém confrontado com a irreversibilidade das escolhas que fez. A narrativa, por mais hesitante que seja em sua forma, acerta ao não canonizar seu protagonista. Em vez disso, o expõe como um sujeito comum, assombrado por suas omissões, incapaz de reescrever a própria história com a maestria com que escrevia para os outros. E talvez seja aí, na tensão entre o criador e o homem, que a obra encontra sua centelha mais honesta.
★★★★★★★★★★