O filme que ninguém viu chegando — e agora é Top 10 da Netflix em 93 países Divulgação / Columbia Pictures

O filme que ninguém viu chegando — e agora é Top 10 da Netflix em 93 países

Não há nada de inocente na afeição que um lobo desperta em meio a um abismo de gelo. Em “Alfa”, a premissa aparentemente singela — a formação do elo entre um jovem e um animal — esconde uma elaboração minuciosa de afetos primitivos e disputas de poder que antecedem qualquer civilização. Ambientado em uma era anterior à linguagem como a conhecemos, o filme recusa a palavra como guia e aposta tudo no gesto, na imagem e no silêncio. A conexão que nasce entre Keda, um adolescente lançado à sobrevivência após ser deixado para trás em uma caçada tribal, e Alfa, uma fera ferida que poderia tê-lo devorado, transforma-se em território fértil para explorar não apenas a origem da domesticidade, mas o que ela exige em troca: abdicação do instinto em nome da confiança. Trata-se de um pacto difícil de classificar — nem ternura, nem domínio, mas algo intermediário e inquietante, que faz do filme menos uma fábula sobre amizade do que uma investigação visual sobre o que é possível entre espécies que se toleram por necessidade.

O estranhamento entre humano e animal é, no entanto, apenas o primeiro de vários atritos que sustentam a força narrativa de “Alfa”. Keda, filho único de um líder tribal, é lançado ao limite entre a rigidez dos ritos masculinos e a fragilidade de uma sensibilidade que não encontra lugar no mundo ao seu redor. A hesitação em matar, vista por seu pai como fraqueza, expõe um descompasso profundo entre expectativa e natureza. Esse desacordo não é resolvido com discursos, mas com o impacto visual de uma queda brutal — não apenas física, mas simbólica — que o isola do grupo e o força a refazer, passo a passo, o trajeto entre instinto e identidade. O roteiro, consciente da tensão entre verossimilhança e mito, aposta em soluções narrativas que muitas vezes desafiam a lógica, mas nunca o afeto. Quando Keda opta por cuidar do lobo em vez de matá-lo, o gesto não simboliza apenas empatia: é a encenação primordial de um acordo que, milênios depois, transformaria feras em companhia.

Há um compromisso estético radical em “Alfa” que dispensa qualquer concessão didática. O idioma utilizado — uma reconstrução ficcional de línguas ancestrais — impede o espectador de se apoiar no conforto das palavras, obrigando-o a decifrar emoções através de expressões corporais, paisagens e silêncios. Os planos largos, que encolhem os protagonistas diante de horizontes gelados e céus opressivos, não são apenas belos: são recursos dramáticos que reiteram a insignificância do indivíduo frente à natureza, ao tempo e à própria espécie. A sequência em que Keda tenta escapar de um lago congelado enquanto Alfa o acompanha impotente pela superfície é um exemplo da síntese entre tensão narrativa e potência estética — não há diálogo, apenas desespero compartilhado entre dois corpos que ainda não se pertencem. A direção de Albert Hughes, aliada à fotografia de Martin Gschlacht, constrói um universo onde cada plano carrega mais verdade do que qualquer fala poderia oferecer.

A força do filme reside, em parte, na recusa em entregar ao espectador uma experiência emocionalmente confortável. Há ternura, sim, mas sempre sob a ameaça da ruptura. Alfa, por mais domesticado que pareça, continua sendo um lobo, e o filme não deixa que o público esqueça disso. Ao mesmo tempo, há algo quase irônico no modo como a Sony disfarça o caráter legendado da produção, como se receasse a rejeição de uma audiência acostumada à familiaridade do inglês. Mas “Alfa” não pretende agradar; sua intenção é mais ambiciosa: provocar uma forma de aproximação que se dá pelo estranhamento, e não pela identificação fácil. Mesmo suas soluções mais forçadas — como a sobrevivência de Keda em circunstâncias improváveis — parecem menos erros de lógica do que recursos de uma narrativa que se enraíza no território do mito, onde o real e o simbólico convivem sem necessidade de se justificar mutuamente.

A narrativa conduz o espectador a uma conclusão desconcertante: o que se inicia como um rito de passagem individual culmina em uma reorganização simbólica do próprio conceito de vínculo. Keda não apenas sobrevive — ele funda, junto com Alfa, uma nova gramática do afeto, uma proto-história da aliança que redefiniria o destino das duas espécies. A liderança que o garoto aprende a exercer não é moldada pela imposição, mas pela escuta; não é o mais forte quem guia, mas o que compreende os limites do outro. Da mesma forma, o lobo que se curva não abandona seu ímpeto selvagem — apenas o coloca em suspenso, em nome de uma convivência que, embora tênue, sustenta a travessia. “Alfa” não romantiza esse pacto, mas o observa com a solenidade que ele merece: como um momento inaugural em que a sobrevivência deixou de ser apenas luta e passou a incluir o cuidado como estratégia.

Esse deslocamento sutil — da força bruta para a força que acolhe — é o que faz de “Alfa” mais do que um relato de aventura. É um experimento narrativo sobre como aquilo que chamamos de humanidade não foi apenas conquistado, mas aprendido em diálogo com o outro radical: o animal. O filme exige do público a mesma abertura que exige de seus personagens: a capacidade de abandonar certezas, de escutar o silêncio e de reconhecer o risco implicado em qualquer forma de aproximação verdadeira. Se as crianças saem da sessão desejando um lobo, talvez não tenham entendido que, antes de tudo, “Alfa” é um lembrete inquietante de que domesticar significa também ser domesticado. E que a beleza de qualquer vínculo só se revela quando aceitamos que o outro não está ali para nos espelhar, mas para nos transformar.

Filme: Alfa
Diretor: Albert Hughes
Ano: 2018
Gênero: Aventura/Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★