Ele parecia genérico — mas virou o filme de ação mais assistido do mundo na Netflix em abril Divulgação / Netflix

Ele parecia genérico — mas virou o filme de ação mais assistido do mundo na Netflix em abril

Um projeto narrativo que percorre quase três décadas precisa mais do que continuidade para se justificar — precisa de reinvenção, propósito e coesão. A série “O Atirador”, iniciada em 1993, ainda existe, mas já não responde pelas razões que a tornaram viável. Em “O Atirador: Missão Secreta”, o que se vê é a tentativa de manter em funcionamento uma engrenagem que range em cada movimento, enquanto seus personagens orbitam uma trama que insiste em parecer urgente, mas soa reciclada. Brandon Beckett, filho do protagonista original e interpretado por Chad Michael Collins, vive sob a sombra de um legado que lhe pesa mais como fardo do que como impulso. Na superfície, ele combate uma rede internacional de exploração sexual, mas sob esse verniz moralizante se oculta um enredo que oscila entre a paródia involuntária e a pretensão esvaziada. O cenário, que deveria amplificar o risco e o trauma da missão, transforma-se num campo de jogo onde as convenções de ação se esfacelam diante da inconsistência tonal e da precariedade narrativa.

A estratégia adotada pelo diretor Oliver Thompson — que acumula funções como roteirista e compositor da trilha — aposta em um reposicionamento estético que, embora ambicioso, sabota o próprio filme. Ao tentar infundir ao longa uma atmosfera que remete a certo cinema autorreferente, com ecos do estilo de Quentin Tarantino, Thompson desloca o eixo dramático da série para um terreno instável. A trilha sonora vibrante e a montagem veloz geram expectativa por um espetáculo visual que nunca se cumpre de fato. As cenas de ação, supostamente o motor do gênero, são escassas, mal orquestradas e frequentemente suprimidas por diálogos que carecem de vigor e inteligência. O humor, que deveria operar como válvula de escape ou mecanismo de ironia, instala-se como ruído dissonante. Em vez de conferir leveza, fragiliza ainda mais a credibilidade do argumento central. O tráfico de pessoas, tema de extrema gravidade, é tratado com uma displicência que beira a indiferença — um paradoxo ético que compromete qualquer tentativa de engajamento do espectador.

Nesse vácuo de direções, os personagens, que deveriam carregar a tensão do roteiro, tornam-se caricaturas de si mesmos. Beckett e Zero, teoricamente os pilares da resistência contra o sistema corrupto que os marginalizou, perdem força a cada piada mal colocada ou cena truncada. Lady Death, assassina implacável com um passado entrelaçado aos protagonistas, é reintroduzida como figura de apoio em um enredo que não sabe se a deseja como ameaça, aliada ou lembrança incômoda. A profundidade que poderia surgir desses reencontros é abortada por um roteiro que prefere insinuações superficiais a confrontos substantivos. Harvey Cusamano, o agente federal cujo envolvimento com o tráfico é revelado de maneira abrupta, simboliza o colapso da coerência institucional, mas seu arco é tão raso quanto as investigações que o cercam. A subtrama da testemunha protegida, Mary Jane, parece existir apenas para justificar a perseguição de uma narrativa que não consegue se sustentar por si.

É revelador que o ponto mais comentado sobre o filme não esteja nas atuações ou nos conflitos morais que supostamente deveriam conduzi-lo, mas na trilha sonora — um indicativo claro do desequilíbrio estrutural. Em um produto audiovisual, o som deve acentuar, não compensar. Aqui, ele encobre os silêncios constrangedores de um texto que tropeça em sua própria ambição. A decisão de colocar Beckett e companhia na ilegalidade, forçando-os a operar à margem da autoridade, poderia ter sido um catalisador potente para uma reflexão sobre limites éticos e métodos não convencionais. Mas em vez disso, o filme opta por um cinismo pueril, preferindo zombar de suas próprias premissas a explorá-las com profundidade. A ironia não é que a série esteja se reinventando — é que ela já não parece saber o que foi um dia, tampouco para onde pretende ir.

A experiência de assistir a “O Atirador: Missão Secreta” se assemelha a presenciar o desmoronamento de uma ideia que já não reconhece suas fundações. O filme tenta se equilibrar entre o pastiche e a crítica social, mas cai no abismo de sua indecisão. Para o espectador que acompanha a franquia desde suas origens, o que resta é a desconfortável sensação de ter sido empurrado para uma zona onde nada mais é levado a sério: nem o drama, nem os personagens, nem a realidade que o filme finge denunciar. No fundo, talvez essa seja sua confissão mais sincera — não há mais missão possível quando até o próprio roteiro abandona o alvo.

Filme: O Atirador: Missão Secreta
Diretor: Oliver Thompson
Ano: 2022
Gênero: Ação/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★