Em 7 dias, 55 mil horas assistidas: a série médica que explodiu na Netflix em 2025 Jeff Neumann / Netflix

Em 7 dias, 55 mil horas assistidas: a série médica que explodiu na Netflix em 2025

A ilusão de estabilidade desmoronou em março de 2020. A pandemia de covid-19, até então apenas um espectro distante em manchetes e gráficos, eclodiu com força inquestionável, interrompendo as rotinas do planeta com a brutalidade de um colapso súbito. Subitamente, as divisões sociais tornaram-se irrelevantes diante do confinamento compulsório e da fragilidade biológica compartilhada. O vírus impôs um silêncio forçado aos espaços públicos e revelou, com crueldade meticulosa, o custo acumulado da relação destrutiva entre humanidade e natureza. O que parecia uma anomalia era, na verdade, a fatura vencida de séculos de predação ambiental, negligência sanitária e arrogância civilizatória.

Sob esse pano de fundo dissonante, tornou-se evidente que a catástrofe não seria apenas sanitária. A gestão do colapso variou da ineficiência à irresponsabilidade. No Brasil, os desatinos do poder público colaboraram com o descontrole, enquanto a população lidava com o medo, a solidão e a necessidade urgente de um sentido. Nesse contexto, os profissionais de saúde passaram a ocupar um lugar quase mitológico no imaginário coletivo — figuras vistas ora como heróis invulneráveis, ora como santos de jaleco branco, desprovidos de desejos banais ou contradições humanas. A série “Pulse”, criação de Zoe Robyn, entra nessa equação com a clara intenção de desconstruir esse mito, revelando as complexidades de quem lida diariamente com vidas suspensas por um fio em um pronto-socorro de alta complexidade.

Situado em Miami, o Maguire Medical Center é o palco onde se desenrolam os dez episódios da série. Mais do que encenar o cotidiano de uma equipe médica especializada em traumas, a proposta dramatúrgica expõe os conflitos internos de quem cuida. “Pulse” abre o tórax da rotina hospitalar para muito além do sangue e do bisturi: lá estão a vaidade, o medo, o ressentimento, o desejo de autopreservação, todos os sintomas de uma humanidade tão vulnerável quanto a dos pacientes que essas pessoas juraram salvar. Não há pretensão de heroísmo: o foco está nos dilemas que corroem lentamente a certeza profissional, como se o crachá da medicina não bastasse para blindar ninguém dos próprios abismos.

Ao longo da vida, descobre-se que a lógica das tragédias é regida por uma mecânica obscura: é menos sobre o que acontece e mais sobre quando — e com quem. “Pulse” se aprofunda nesse princípio ao evidenciar a tênue linha que separa o controle da impotência. No universo hospitalar, onde decisões são tomadas sob uma pressão insuportável, erros têm consequências definitivas. A relação entre médicos e pacientes se constrói no fio da navalha, e frequentemente é o lado que deveria fornecer amparo quem se vê em frangalhos. O texto de Robyn — auxiliado por sete roteiristas — explora esse colapso interno com precisão e ousadia, abrindo espaço para personagens que, ainda que envoltos em jalecos e protocolos, se revelam falhos, conflituosos e, por isso mesmo, absolutamente reais.

A narrativa se lança com força no primeiro episódio, quando uma equipe de futebol americano é levada ao hospital após um acidente provocado pelo próprio treinador. Esse caso não apenas inaugura o tom tenso da série, como também posiciona Danielle Simms — vivida por Willa Fitzgerald — no centro da tempestade. Traumatologista respeitada, ela se torna o eixo de um enredo que mistura alta intensidade emocional com as engrenagens frias do sistema hospitalar. Desde o início, a personagem lida com conflitos éticos e interpessoais, entre eles a presença incômoda de Xander Phillips, um colega com quem mantém uma relação marcada por acusações e tensões mal resolvidas.

É justamente na interação entre Danny e Xander que a série atinge seus momentos mais incômodos e, paradoxalmente, mais reveladores. Colin Woodell e Fitzgerald conduzem com precisão essa dança de antagonismo e cumplicidade involuntária, forjando uma tensão que sustenta o interesse do espectador sem recorrer a soluções fáceis. A construção das cenas que envolvem os dois sugere que as verdadeiras batalhas travadas no Maguire não se dão entre vida e morte, mas entre orgulho e vulnerabilidade. A narrativa se desenrola como uma ferida aberta que se recusa a cicatrizar — e é exatamente nesse desconforto que reside sua força.

Chegando ao décimo episódio, batizado de “Kennedy”, a criadora subverte expectativas de maneira que alguns espectadores dificilmente perdoarão. A escolha narrativa que recai sobre Danny não é apenas ousada: é cruel em sua franqueza, um lembrete de que nem todos os arcos precisam de redenção para serem contundentes. Ali, Robyn parece confrontar o público com uma pergunta inevitável: o que nos torna, afinal, dignos de empatia? Em vez de respostas, “Pulse” opta por deixar cicatrizes. E ao fazê-lo, reafirma que nenhuma dor é exclusiva — nem mesmo a de quem salva vidas.


Série: Pulse
Criação: Zoe Robyn
Ano: 2025
Gênero: Drama
Nota: 8/10