Último dia para assistir: o maior filme da história do cinema será removido da Netflix hoje Divulgação / Paramount Pictures

Último dia para assistir: o maior filme da história do cinema será removido da Netflix hoje

Ao longo da história do cinema, poucos títulos assumiram a condição de relíquia cultural e artefacto narrativo com a densidade simbólica de “O Poderoso Chefão”. Mais do que uma adaptação de sucesso, trata-se de uma anomalia histórica: uma obra que nasce do descrédito, avança sob resistência e consagra-se como referência incontornável. A trajetória de Francis Ford Coppola, de cineasta endividado e relutante a arquiteto de um fenômeno cultural, espelha com precisão o próprio enredo que dirigiu — um império edificado entre dúvidas, lealdades frágeis e decisões brutais. A recusa inicial de diversos diretores, a zombaria pública ao livro de Mario Puzo, e a aceitação pragmática do projeto por um cineasta pressionado por credores, tudo compôs um prelúdio inusitado para aquele que viria a moldar o imaginário audiovisual de gerações. O filme que ninguém queria tornou-se o espelho mais fiel de uma América dividida entre códigos de honra e a lógica implacável do poder herdado.

A singularidade estética e narrativa da trilogia, especialmente de seu primeiro capítulo, reside em sua capacidade de dramatizar uma mutação silenciosa — tanto dentro da família Corleone quanto no próprio ofício cinematográfico. Ao transitar de um patriarca envolto em valores quase litúrgicos para um herdeiro cuja frieza estratégica redefine os rumos da linhagem, o roteiro articula uma alegoria de transformação moral e estrutural. Essa transição, que desloca o poder de Don Vito para Michael, não representa apenas uma mudança de geração, mas um colapso daquilo que restava de códigos não escritos. A encenação dessa passagem, através da cadência deliberada de Coppola, da fotografia escurecida de Gordon Willis e das atuações que esculpem a interioridade dos personagens com precisão quase geológica, alcança uma ressonância que ultrapassa os limites do enredo. Cada sombra projetada, cada porta que se fecha, cada pausa entre as falas encarna um deslocamento de eixo — não apenas na trama, mas na própria noção de tempo fílmico.

Esse rigor composicional é ainda mais evidente quando se contrasta “O Poderoso Chefão” com a lógica seriada e dispersa que domina o entretenimento contemporâneo. A experiência do filme, ao ser revivida hoje em sessões comemorativas ou através das plataformas de streaming, denuncia com elegância a dispersão temática e a diluição estrutural dos formatos atuais. Em uma época onde premissas banais são infladas em episódios infindáveis, a contenção narrativa de Coppola, sua capacidade de construir tensão e significado com parcimônia e precisão, torna-se quase uma afronta à lógica do excesso. A sequência de eventos — da cabeça de cavalo ao massacre sincronizado do batismo — é orquestrada com uma disciplina quase musical, sem jamais sacrificar a ambiguidade ética dos personagens. Não se trata de glorificar o passado, mas de reconhecer que ali se encontra uma arquitetura dramática cujo impacto não foi igualado, apenas reproduzido de forma cada vez mais pálida.

Mais do que um filme de gângsteres ou uma narrativa de ascensão e queda, “O Poderoso Chefão” instituiu um léxico emocional e visual que reverbera até nos que jamais o assistiram. Falas como “Luca Brasi dorme com os peixes” ou imagens como a cabeça de cavalo em lençóis de linho não são apenas referências: tornaram-se signos de uma linguagem partilhada, fragmentos de um mito moderno. No entanto, o verdadeiro valor da obra reside em sua recusa ao espetáculo gratuito — seu horror é sempre contido, calculado, inserido em contextos que o tornam eticamente perturbador. A trilha de Nino Rota, melancólica e decadente, não pontua apenas cenas: ela sustenta uma elegia ao mundo que se desintegra silenciosamente, à medida que outro mais frio e eficiente o substitui. Nesse sentido, assistir ao filme hoje é menos um exercício de nostalgia e mais um confronto direto com uma pergunta que insiste em não calar: o que exatamente se perdeu — e o que se ganhou — quando os ideais se renderam à eficácia?

Filme: O Poderoso Chefão
Diretor: Francis Ford Coppola
Ano: 1972
Gênero: Crime/Drama/Épico
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★