A história de amor que fez mais de 180 milhões de pessoas chorarem em silêncio está de volta à Netflix — e não perdeu a força Divulgação / Focus Features

A história de amor que fez mais de 180 milhões de pessoas chorarem em silêncio está de volta à Netflix — e não perdeu a força

O gesto inaugural de “Desejo e Reparação” não é narrativo, mas simbólico: o som mecânico da máquina de escrever de Briony Tallis marca o ritmo não só da cena, mas de todo o destino dos personagens. O que à primeira vista soa como ambientação histórica revela-se a codificação de uma tragédia anunciada. Joe Wright transforma esse início aparentemente simples — uma jovem escrevendo uma peça teatral em 1935 — em uma chave estrutural: a escrita será a força geradora e destrutiva da realidade. Ao articular linguagem, desejo e percepção, o filme propõe um dilema inquietante: seria a arte uma forma de redenção ou apenas o requinte supremo da culpa? No universo de Wright e McEwan, a resposta não cabe em fórmulas, apenas em complexidades morais e estéticas profundamente entrelaçadas.

A elegância das primeiras imagens em uma casa de campo inglesa, em pleno entre-guerras, jamais é apenas decorativa: cada detalhe — do figurino verde de Cecilia ao calor abafado do verão — prepara a colisão entre inocência e interpretação equivocada. A câmera, sempre ambígua, desliza entre pontos de vista, captando a tensão latente entre classes, gêneros e idades. Quando Briony observa um encontro erótico entre sua irmã e Robbie Turner, ela não vê desejo, mas perversão. E é nesse ruído perceptivo que a narrativa implode. Wright evita juízos fáceis: o olhar infantil não é tratado como inocente, mas como criativo e destrutivo, tão poderoso quanto imaturo. Ao interceptar uma carta e testemunhar um encontro furtivo, Briony escreve sua própria versão dos fatos — uma versão que se imporá sobre a realidade com consequências devastadoras.

O filme, no entanto, não se contenta em dramatizar um mal-entendido: ele se estrutura como uma interrogação sobre os limites entre ficção e verdade, amor e culpa, narrativa e responsabilidade. À medida que os personagens amadurecem em meio à Segunda Guerra Mundial, o que se agrava não é apenas a distância geográfica entre eles, mas a impossibilidade de retorno à origem. Robbie, agora soldado, e Cecilia, enfermeira em Londres, vivem sob a sombra de um tempo que lhes foi roubado. Briony, por sua vez, renuncia à universidade para cuidar de feridos — mas seu movimento é menos altruísta do que expiatório. Ela tenta, com atos concretos, corrigir uma distorção simbólica. No entanto, como sugere a frieza com que Cecilia a recebe em seu único reencontro, nenhuma boa intenção consegue reescrever aquilo que foi brutalmente rasurado.

Wright alterna o intimismo silencioso de olhares suspensos com a escala épica de sequências como a da evacuação de Dunquerque, capturada em um plano-sequência de mais de cinco minutos. Mas, longe de ser apenas virtuosismo técnico, esse recurso evoca o colapso de qualquer noção linear de tempo, tal como ocorre na mente de Briony, onde presente e passado se embaralham. A guerra serve como espelho ampliado da destruição causada por sua mentira: o caos coletivo como extensão da devastação íntima. Nesse sentido, Wright não retrata a guerra para exaltá-la ou ilustrá-la, mas para acentuar o abismo entre os afetos interrompidos e a brutalidade do mundo. Cada cenário devastado reforça a ausência — não apenas física — dos encontros que não puderam se concretizar.

O desfecho, então, não chega como alívio ou consolo, mas como uma torção final no pacto com o espectador. Quando Vanessa Redgrave encarna Briony já idosa, a revelação de que o reencontro entre os amantes jamais aconteceu rompe com qualquer ilusão de reparação. Trata-se, na verdade, de uma simulação construída pela própria autora como tentativa de reescrever a história que arruinou. Wright, ao manter o espectador na crença de que o amor venceu o tempo, compromete-o com a mesma ilusão que sua protagonista forja. E, ao desmontar essa ilusão no último momento, o filme expõe o que há de profundamente ambíguo na criação artística: sua capacidade de confortar e iludir, redimir e trair ao mesmo tempo. A arte, nesse contexto, não é reparadora — é um eco melancólico daquilo que nunca poderá ser recuperado.

O impacto de “Desejo e Reparação” reside justamente nessa recusa em oferecer soluções. O filme opta por tensionar a fronteira entre o que se vive e o que se escreve, entre o que se vê e o que se interpreta. Joe Wright não adapta apenas um romance premiado — ele constrói uma obra que pensa sobre a própria capacidade do cinema de manipular emoções, expectativas e verdades. Não há catarse, apenas a sensação incômoda de que algumas histórias, por mais belas que sejam, nasceram da mentira. E que, às vezes, o mais sofisticado gesto de arrependimento é reconhecer que não há gesto algum que possa desfazer o estrago já narrado. É nesse abismo que o filme se instala — e é justamente por isso que ele permanece.

Filme: Desejo e Reparação
Diretor: Joe Wright
Ano: 2007
Gênero: Drama/Romance
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★