Há algo de profundamente revelador na frase dita casualmente por um personagem em “Velozes & Furiosos 10”: “É como uma seita, mas com carros.” Embora soe como piada interna, o comentário funciona como chave de leitura para uma franquia que, ao longo de 22 anos, dissolveu qualquer limite entre realismo e fantasia, transformando o culto à velocidade em uma nova forma de mitologia popular. Não estamos mais diante de filmes sobre corridas ilegais ou assaltos sofisticados — esse território foi ultrapassado com tanta naturalidade que o extraordinário tornou-se a norma. A lógica narrativa não é apenas suspendida, mas deliberadamente sabotada, como se os próprios roteiristas estivessem num jogo de provocação com o espectador: quanto mais improvável, melhor. O resultado é um cinema que não busca verossimilhança, mas uma espécie de êxtase pela implausibilidade, um desfile coreografado de excessos que não se explicam — apenas se impõem.
Essa estética da extravagância encontra sua síntese mais contundente na figura de Dante Reyes, interpretado por Jason Momoa com uma liberdade que beira o niilismo performático. O personagem não apenas quebra a estrutura da franquia: ele zomba dela. Ao surgir como herdeiro do antagonista de “Velozes & Furiosos 5”, Dante transforma sua cruzada de vingança numa performance contínua, em que destruição e teatralidade caminham lado a lado. Sua presença desestabiliza o eixo moral do enredo, porque ele não deseja vencer — ele quer encenar o caos. Seus ataques às cidades do mundo, sua obsessão por espetacularizar a violência e seu figurino anárquico o colocam mais próximo de uma entidade do que de um vilão tradicional. Não há centro estável diante de Dante: ele não é apenas o catalisador da ação, mas a alegoria da própria lógica que rege a franquia — o imprevisível que se alimenta da implosão constante das expectativas.
Enquanto isso, o núcleo familiar comandado por Dominic Toretto continua orbitando em torno de máximas solenes sobre lealdade, sangue e pertencimento, como se a repetição desses mantras pudesse preservar alguma âncora emocional em meio ao delírio. A figura de Dom, interpretada por Vin Diesel com sua habitual gravidade cavernosa, tornou-se um monumento à própria permanência: ele não muda, não quebra, não hesita. Mas essa rigidez não é fraqueza — é método. A inflexibilidade de Dom contrasta com a fluidez insana do mundo ao seu redor, funcionando como eixo simbólico de uma estrutura que precisa parecer inabalável, mesmo quando tudo ao redor se fragmenta em escombros. Suas aulas de direção para o filho, repletas de metáforas sobre “sentir o carro” e “deixar fluir”, são menos conselhos práticos e mais dogmas de fé. O volante, nas mãos de Dom, não conduz um veículo: conduz uma ideologia.
Essa ideologia, aliás, não se sustenta sobre coerência interna, mas sobre uma fidelidade radical à própria incoerência. Os roteiros de Justin Lin e Dan Mazeau não constroem uma história — montam um circuito de eventos ao redor de cenas de ação que desafiam qualquer concepção física do espaço, tempo ou mecânica. Uma bomba pode explodir duas vezes, um carro pode escalar uma represa, uma perseguição pode atravessar continentes em minutos — e nada disso exige justificativa. Porque a lógica de “Velozes & Furiosos 10” não está no roteiro, mas no ritmo. Trata-se de um cinema que não pede crença, apenas aceitação: a suspensão da descrença é substituída pela disposição do espectador em abraçar o absurdo como forma legítima de entretenimento. E o que seria um defeito em qualquer outro filme — a desconexão entre cena e enredo — aqui se converte em estratégia narrativa.
Não à toa, o elenco colabora com essa simulação coletiva de realidade com um entusiasmo quase metafísico. Quatro vencedores do Oscar circulam pelo filme como se estivessem em férias remuneradas, desfilando por cenários exóticos enquanto contribuem com frases de impacto, aparições pontuais ou olhares significativos. As personagens femininas, embora subaproveitadas, funcionam como aparições míticas, e mesmo os coadjuvantes mais recentes ganham espaço para explicar, rir e reforçar o pacto da franquia com o exagero. A totalidade do universo “Velozes & Furiosos” é construída como uma espécie de carnaval narrativo: todos têm função, mesmo que não tenham lógica. E é justamente essa estrutura inflada, quase paródica, que permite ao filme existir como aquilo que ele verdadeiramente quer ser — uma catarse visual movida a nitroglicerina narrativa.
Mas se tudo parece calculado para provocar vertigem, é na persistência da sensação — e não da memória — que reside a inteligência secreta de “Velozes & Furiosos 10”. Poucas horas após a sessão, é possível esquecer a ordem dos acontecimentos, os diálogos ou até mesmo os conflitos centrais. No entanto, permanece um resíduo de fascínio, uma vibração residual difícil de nomear. Isso porque o filme não quer ser lembrado como história, e sim como experiência: um frenesi estético que não se traduz em palavras, mas se imprime no corpo do espectador como uma aceleração contínua. Ao renunciar à lógica como medida de valor, “Velozes & Furiosos 10” abraça sua identidade com brutal honestidade — não como cinema que deseja convencer, mas como espetáculo que exige rendição.
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