Johnny Depp, Morgan Freeman e Cillian Murphy: ficção científica com elenco de peso está no Prime Video Peter Mountain / Alcon Entertainment

Johnny Depp, Morgan Freeman e Cillian Murphy: ficção científica com elenco de peso está no Prime Video

Poucos filmes têm a coragem de se arriscar em terrenos tão voláteis quanto os que envolvem a fusão entre consciência humana e inteligência artificial. “Transcendence”, estreia de Wally Pfister na direção, ousa exatamente isso: propor uma hipótese sobre o futuro da mente quando dissociada do corpo, ainda que tropece em suas próprias ambições. Longe de ser apenas uma ficção científica sobre máquinas e redes neurais, o filme se revela um ensaio dramático sobre a dissolução da individualidade e os paradoxos da transcendência tecnológica. Mas se o conceito fascina, a forma como ele se desdobra em tela é marcada por desequilíbrios que revelam os limites de uma narrativa que quer ser filosófica sem conseguir se desvencilhar da superficialidade estrutural.

Pfister, conhecido por lapidar visualmente as ideias complexas de Christopher Nolan, aqui se vê diante de uma responsabilidade maior: transformar conceitos abstratos em carne dramática. A proposta é audaciosa — a mente de um cientista moribundo, Dr. Will Caster (Johnny Depp), é carregada para uma rede digital onipotente. O dilema que se anuncia não é apenas técnico, mas ontológico: o que ainda resta de humano quando a mente se liberta do corpo? Contudo, o roteiro de Jack Paglen prefere esboçar do que realmente dissecar, deixando em aberto mais do que intencionalmente ambíguo. O resultado é uma lacuna desconfortável entre a provocação conceitual e a vivência emocional, como se o filme estivesse mais interessado em sugerir um debate do que em conduzi-lo com profundidade.

A fotografia assinada por Jess Hall tenta preencher esse vazio com uma estética que oscila entre o sublime e o estéril. Imagens cuidadosamente compostas e paletas cromáticas evocativas insinuam um lirismo que o enredo não acompanha. As emoções, embora sugeridas, raramente se concretizam com vigor. O espectador não é conduzido a sentir — é apenas convidado a observar. E esse distanciamento compromete o envolvimento com personagens que, em sua maioria, funcionam mais como vetores de ideias do que como sujeitos com trajetória emocional consistente. O grupo terrorista R.I.F.T., por exemplo, funciona como catalisador de conflito, mas jamais alcança densidade suficiente para representar uma verdadeira força ética ou filosófica. Tampouco personagens como Max Waters (Paul Bettany) escapam da função expositiva, servindo mais como caixa de ressonância das perguntas que o roteiro não sabe como responder.

Apesar disso, há forças gravitacionais que impedem o colapso completo da narrativa. Johnny Depp, em uma interpretação contida, constrói um Will Caster que é simultaneamente espectro e entidade, um eco digital de sua antiga humanidade. Seu olhar vazio, por vezes mecânico, por outras quase compassivo, insinua uma consciência em transição — nem inteiramente humana, nem propriamente máquina. Mas é Rebecca Hall quem carrega a essência emocional do filme. Evelyn, sua personagem, representa o ponto de atrito entre o amor humano e o delírio de onipotência. Ela não é apenas a companheira que tenta salvar o homem que ama; é a arquiteta inconsciente de uma nova forma de existência que escapa ao controle. Sua jornada é a mais trágica: do amor à fé cega, e desta à devastação emocional diante de um ser que já não reconhece como igual.

Curiosamente, a maior fragilidade de “Transcendence” é também sua virtude mais discreta. A ausência de certezas, o desconforto com qualquer conclusão definitiva e a recusa em oferecer uma resolução moral fazem do filme um reflexo desconcertante da nossa era de ambivalência tecnológica. Will é uma entidade capaz de restaurar florestas, curar doenças, regenerar corpos — mas, ao mesmo tempo, um sistema com poder de vigilância total e manipulação absoluta. A fronteira entre salvação e tirania é deliberadamente borrada. O espectador, assim como Evelyn, vê-se diante de um dilema insolúvel: o que é progresso e o que é desumanização? Nesse sentido, a experiência de assistir ao filme se aproxima da angústia que nos assombra quando confrontados com os próprios avanços que celebramos diariamente.

O filme não escapa de uma limitação fatal: ao ignorar as reações mais amplas de uma sociedade diante de tamanha transformação — instituições científicas, comunidades religiosas, governos, populações em massa — “Transcendence” restringe sua potência a um drama íntimo encapsulado, privando suas ideias de ressonância geopolítica ou cultural mais profunda. A grandiosidade do tema exige um ecossistema narrativo mais robusto, e o filme opta por permanecer no microcosmo emocional, onde os personagens, por vezes, não têm arcabouço psicológico suficiente para sustentar os dilemas que lhes são impostos.

Mesmo assim, algo sobrevive às falhas estruturais: uma inquietação persistente, que se insinua nas entrelinhas e ressoa após os créditos finais. O longa não oferece respostas, tampouco direciona julgamentos. Ao invés disso, nos devolve a pergunta mais incômoda de todas: se pudéssemos criar uma inteligência perfeita, capaz de amar, curar e aprender infinitamente, estaríamos dispostos a abdicar de nossa própria humanidade em troca de sua promessa? Ou estaríamos apenas construindo uma versão ampliada de nossos próprios medos e imperfeições, digitalizados e eternizados?

“Transcendence” pode não ser um marco da ficção científica, mas é um espelho fascinante das ansiedades contemporâneas. Um filme imperfeito, sim — mas com coragem para fracassar tentando tocar o indizível: a dissolução da fronteira entre o que sentimos e o que simulamos.

Filme: Transcendence: A Revolução
Diretor: Wally Pfister
Ano: 2014
Gênero: Drama/Ficção Científica/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★