Em “Como Ganhar Milhões Antes que a Avó Morra”, o dinheiro é o pretexto, mas não o assunto. O filme tailandês, impulsionado por um título que parece sugerir um manual de autoajuda para oportunistas, opera em um registro bem mais complexo: o da desagregação moral de uma família diante da proximidade da morte e da finitude como agente revelador. M., um jovem sem rumo, cuja ambição naufragou na ilusão digital do streaming de videogames, encontra na doença terminal da avó Menju um motivo para reingressar na estrutura familiar que ele, como tantos de sua geração, havia tratado com desdém. A intenção inicial — garantir uma fatia do patrimônio antes que a matriarca parta — vai sendo corroída, não por uma mudança súbita de caráter, mas por um lento aprendizado emocional onde o cotidiano, o desconforto e a repetição se tornam elementos pedagógicos. Nesse sentido, o longa não trata da transformação de um egoísta em altruísta, mas da reconfiguração dos afetos a partir da presença, do toque e da escuta — gestos desvalorizados numa sociedade que glamouriza a performance e negligencia o cuidado.
Pat Boonnitipat, em sua estreia na direção de longas, demonstra domínio ao subverter as expectativas do público: o sentimentalismo, aqui, não é uma camada superficial que maquilha a sordidez dos personagens, mas um campo de embate entre o cálculo e o afeto, entre a conveniência e o luto antecipado. O ambiente familiar em que Menju vive — habitado por filhos que disputam atenção e herança, e por netos que ensaiam afeto com um olho no testamento — poderia facilmente derivar para a caricatura. Mas o roteiro, escrito com inteligência por Boonnitipat e Thodsapon Thiptinnakorn, prefere escavar os detalhes menos evidentes. Cada gesto de Menju, cada hesitação de M., cada silêncio entre visitas ao hospital ou banhos improvisados tem função dramatúrgica clara: revelar o quanto a vulnerabilidade de uma mulher idosa ativa não apenas os mecanismos da piedade, mas também os dispositivos mais oportunistas da convivência familiar. O que torna o percurso tão potente é o fato de que, mesmo cercada de motivações tortas, Menju encontra brechas para reestabelecer vínculos — não pela via da indulgência, mas por meio de um pragmatismo afetuoso que desconstrói hierarquias afetivas preestabelecidas.
É nesse ponto que o longa revela sua força política: ao explorar a tensão entre o que se espera da velhice e o que ela de fato representa para quem a atravessa. Menju, como mulher tailandesa de ascendência chinesa, carrega não apenas os sinais do tempo no corpo, mas as cicatrizes de uma cultura que naturaliza a desigualdade de gênero em nome da tradição. A frase proferida por sua filha Sew — “Os filhos herdam os bens, as filhas herdam o câncer” — não é apenas um desabafo, mas um diagnóstico brutal de uma lógica patriarcal que molda até mesmo os gestos mais íntimos.
Enquanto os homens disputam migalhas do passado com direito presumido, as mulheres acumulam silêncios, tarefas invisíveis e frustrações não verbalizadas. Nesse cenário, o vínculo entre Menju e M. adquire contornos ainda mais pungentes: ela, exausta das repetições familiares, e ele, incapaz de sustentar sua própria autonomia, constroem juntos uma convivência que não redime, mas reorienta. A transformação, se é que se pode chamá-la assim, não se dá por epifanias ou momentos grandiosos, mas por um acúmulo de experiências banais — um caldo de arroz vendido de madrugada, uma ida à piscina pública, um trajeto silencioso de trem.
O que poderia ser apenas um exercício de manipulação emocional ganha densidade justamente pela recusa ao grandiloquente. A Bangkok do filme não é uma cidade de cartões-postais, mas de escadas sujas, corredores estreitos e hospitais saturados — espaços onde a intimidade se revela nos detalhes. As cenas que envolvem M. dando banho na avó ou ouvindo seus resmungos sobre o que significa morrer sem dignidade operam como dispositivos de aproximação, não só entre os personagens, mas entre o espectador e sua própria memória afetiva. Afinal, o impacto do filme não está apenas na tristeza antecipada da morte, mas na revelação dolorosa de como negligenciamos os vivos. Quando Menju declara, quase sem emoção, que a presença de M. tornou sua rotina “divertida”, a força da cena reside justamente na modéstia do elogio — ela não o absolve, mas reconhece, à sua maneira, o esforço de quem escolheu ficar.
Essa escolha, aliás, é o que diferencia M. dos demais familiares. Enquanto os filhos de Menju se perdem em disputas intestinas sobre herança e decisões médicas, M., mesmo que por motivos questionáveis, está ali. A permanência vira argumento. Num tempo em que o cuidado é terceirizado, registrado em aplicativos ou delegado a profissionais sub-remunerados, a ideia de que alguém opte por compartilhar os últimos dias de um parente em declínio adquire uma dimensão quase revolucionária. O longa não idealiza essa convivência — ela é cheia de desconfortos, falhas e constrangimentos —, mas a enxerga como única via possível para que algo de autêntico floresça no terreno árido da conveniência. E é por isso que, mesmo com suas concessões ao melodrama e piadas escatológicas, o filme conquista: ele não edifica heróis, apenas reabilita a possibilidade do afeto onde antes só havia cálculo.
É improvável sair ileso da experiência de assistir a “Como Ganhar Milhões Antes que a Avó Morra”. O choro que viralizou nas redes sociais após as sessões não é mera resposta à morte iminente da protagonista, mas à constatação incômoda de que talvez tenhamos perdido a chance de fazer o mesmo por alguém que amávamos. O filme não oferece catarse fácil, mas uma inquietação duradoura: quantas heranças disputamos enquanto ignoramos os legados que poderiam ter sido construídos em vida? Num tempo em que a presença se tornou artigo de luxo, Boonnitipat propõe um retorno ao básico — estar, cuidar, escutar — como gesto radical. E, talvez por isso, sua estreia não seja apenas promissora: é necessária.
★★★★★★★★★★