Rita Lee: o Brasil que ela inventou e que não ousamos ser

Rita Lee: o Brasil que ela inventou e que não ousamos ser

O artista é, quase sempre, um corpo dissonante. Uma frequência fora da harmonia das vozes dominantes. Ele atravessa o tempo histórico, é ruído inaugural, semente de futuros possíveis, mesmo quando semeia no solo duro da incredulidade. Onde o conformismo estabelece padrões, o artista desvia. Onde a norma se estabiliza, o artista fere e, ao ferir, revela. Em sociedades marcadas por estruturas autoritárias, patriarcais ou simplesmente apáticas, a irrupção de uma voz singular não é evento banal. É ruptura, é clarão, é nascimento de outra escuta. O verdadeiro artista representa, funda.

Rita Lee é um desses clarões. Sua aparição na cultura brasileira não obedeceu ao roteiro da consagração fácil, tampouco se acomodou ao papel de “cantora pop”. Ela irrompeu como figura estranha à expectativa, deslocando o eixo do que se entendia por talento, beleza, comportamento, discurso. E mais do que isso: inscreveu no imaginário nacional uma inteligência irônica, lúdica e rebelde que reconfigura códigos, valores, afetos. Rita é produto do Brasil e é um projeto de Brasil. Um país que ainda não se realizou, mas pulsa nos interstícios de sua obra como possibilidade latente: mais criativo, autônomo, amoroso, sarcástico, mais digno.

O Brasil de Rita Lee não é o país das grandes abstrações, nem das glórias cívicas. É um país da contramão, dos afetos insubmissos, dos corpos que dançam e zombam enquanto dizem verdades. Há em sua obra — e em sua figura pública — um tipo raro de inteligência: a inteligência que ri. E que, ao rir, desarma o dogma, expõe a caricatura da autoridade, afrouxa os nós da culpa. Seu humor não é escapatório, é método. É política de linguagem, estratégia de resistência, arquitetura da liberdade. Quando Rita canta, há algo em nós que se reconhece, e algo mais que se emancipa.

A obra de Rita Lee deve ser vista como um sistema sígnico complexo, onde música, performance, discurso e persona se entrelaçam para formar um corpo estético de alta densidade crítica. Rita representa uma época e um estilo musical, também constituindo uma epistemologia. Sua produção formula um modo de conhecer e reimaginar o Brasil, abrindo espaço para o impensado. Não se trata de exaltar ídolos — isso o mercado já faz —, mas de investigar como uma mulher, artista e pensadora construiu, com leveza e rigor, uma das mais sofisticadas visões de país que já emergiram da cultura brasileira.

A inteligência de Rita Lee não se manifesta em tratados, é viva e se encarna em canções. E o faz com um grau de elaboração que desafia qualquer leitura apressada. Em suas letras, o lirismo nunca é puramente sentimental: é artefato estratégico, construído com a destreza de quem conhece tanto a tradição quanto o jogo. “Lança perfume” é uma ode ao êxtase banal e, em contraponto, é tratado irônico sobre os códigos da erótica, deslocando o corpo feminino do campo da passividade para o do desejo ativo, emancipador, performático. A subversão não acontece pelo grito; a subversão, em Rita, dá-se pela ginga. A letra finge ingenuidade para melhor desmontar os dispositivos morais que a sustentam. Rita compõe como quem trama: nela, um verso é sempre um golpe, um refrão, uma reviravolta.

A chave de sua sofisticação está na simplicidade simulada. “Agora só falta você” parece, à primeira escuta, um hino à ausência do outro. Essa canção belíssima é, com precisão cortante, declaração de autonomia. A personagem não espera mais o amado, ela reorganiza a própria estrutura de existência. Há aqui um projeto político de subjetividade: viver-se inteira, sem completar-se no outro. Esse gesto, reiterado em tantas de suas músicas, desafia as construções patriarcais do amor romântico, propondo outro regime de afeto — menos fusão, mais liberdade. Em “Mania de você”, a canção insinua, brinca, mas nunca se entrega à obviedade da paixão. O jogo de vozes, a recusa do sentimentalismo, a leveza que esconde um saber maduro sobre o desejo e seus desvios, tudo ali desestabiliza, reconfigura, desarma.

E quando a língua se desarranja, como em “Orra meu”, não se trata de folclore paulistano, mas de uma transgressão linguística que tem método. A fala popular vira símbolo de resistência contra os padrões hegemônicos da norma culta, da estética formal, da ordem imposta. O mesmo se aplica a “Bwana”, onde a crítica ao exotismo, presente na forma como o Brasil se deixa ver pelo olhar do outro, aparece sob o disfarce de canção pop. Há em Rita uma intertextualidade fluida: suas letras dialogam tanto com Caetano quanto com os Beatles, tanto com o feminismo quanto com o carnaval. Seu humor, sua ironia, sua inteligência lírica operam por acúmulo de sentidos e não por simplificação. Cada canção é um palimpsesto, lugar onde a cultura popular e a crítica sofisticada se encontram sem se anular. Rita não canta só para entreter: é pra cantar e para perturbar. E quem escuta com atenção não sai ileso.

O humor em Rita Lee não é um método de conhecimento, forma rigorosa de ver e de expor. Mais do que traço de personalidade, o humor em sua obra opera como epistemologia, maneira de organizar o mundo, de compreendê-lo e, sobretudo, de desestabilizá-lo. Ao rir, Rita não foge do real: atravessa-o. Sua risada é faca. Faz pensar. E pensar, aqui, é desconfiar da ordem, da moral, das certezas repetidas com tanta segurança pelo senso comum. O riso, nela, é estratégia política e gesto filosófico: remove a crosta da obviedade para revelar a nudez das contradições.

A ironia que permeia sua obra é calculada com precisão. Se não fosse, seu ataque às convenções seria desvalorizado, pois rolaria para a zombaria pueril. Mas ela usa de uma ironia à moda de Swift ou Machado: crítica, corrosiva e elegante. Rita encena tipos sociais (a moça romântica, a suburbana malcriada, a mística esotérica, a feminista debochada) apenas para desmontá-los por dentro. Sua paródia foge da caricatura vulgar, ferramenta de exposição. Há também o sarcasmo afiado, mas sem rancor, e a autodepreciação, sem jamais perder a altivez: arma que desarma. Ao rir de si, Rita antecipa a crítica e se humaniza. Sua inteligência não se quer solene; prefere o escárnio lúcido ao dogmatismo messiânico.

Esse humor multifacetado tem efeito pedagógico: produz deslocamentos. Quem ri com Rita é conduzido a outro regime de percepção, agora menos rígido, normativo e mais permeável à diferença. Ao zombar das figuras de autoridade, idealizações do amor, das convenções do bom comportamento, sua obra abre brechas por onde o novo pode emergir. Não rimos dela para esquecer, rimos para lembrar que o mundo pode ser outro, leve, justo, desobediente. Para ela, rir é pensar com o corpo todo, e só pensa bem quem não teme o ridículo.

Rita Lee cantou o Brasil e o reimaginou. Sua trajetória artística é um esforço contínuo de invenção simbólica de um país que recusa as camisas de força do conservadorismo, da misoginia e do autoritarismo moral. Ao propor uma estética baseada na irreverência e no desvio consciente, Rita forjou um novo imaginário brasileiro, em que o valor não reside na adequação à norma: ele mora na coragem da diferença. Em “Ovelha negra”, a protagonista não busca retorno ao rebanho: proclama sua dissidência como virtude. Não há, na canção, lamento ou ressentimento; há fundação de um sujeito autônomo, que se retira do pacto social para reconstruí-lo em outros termos. Essa inversão — do exílio ao projeto — marca toda a inteligência da obra de Rita: ela retira do “desvio” a matéria-prima para um país mais livre.

Essa liberdade se estende à maneira como ela abordou o desejo, o corpo e a subjetividade. “Doce vampiro” torna a sexualidade feminina agência e jogo, recusa e invenção. A personagem feminina deseja, é desejada sem culpa ou moralismo, isenta de hierarquia. Rita antecipa um feminismo não doutrinário, mas radical em simplicidade. Em “Saúde”, há outro tipo de ousadia: a de resistir com leveza. O humor irônico da canção é uma forma de sobreviver ao caos sem ceder à brutalidade. Ali, a vitalidade se converte em ato político, desejo de cura coletiva para um país adoecido. Em todas essas composições se anuncia a emergência concreta de novas formas de existir, amar, criar e pensar. Rita foi porta-voz e arquiteta desse Brasil, de fato, novo; novo de dentro pra fora.

Como todo projeto visionário, o Brasil que Rita desenhou permanece em suspenso. Se sua obra acendeu faróis, é verdade que vivemos entre apagões frequentes. A pluralidade que ela antecipou encontra resistência; o humor crítico que personificou é sufocado pelo cinismo ou estupidez. Mas seu legado não se dilui. Permanece como arquivo de possibilidades, mapa de um país por vir. Cabe a nós, leitores, ouvintes, intelectuais e desajustados, gratos — se formos conscientes e decentes — extrair dessa obra o que tem de mais valioso: a agudeza de seu pensamento, a coragem de sua desobediência e a beleza de sua liberdade. Em tempos sombrios, a lucidez é um luxo e a ironia, um risco. Rita Lee continua sendo — será sempre — uma das poucas vozes capazes de nos lembrar, com inteligência, graça e riso, que pensar diferente e criticar é, também, um ato de amor ao Brasil, local em que nascemos e vivemos.

Carlos Augusto Silva

É professor de Literatura e História da Arte. Licenciado em Letras e História, é bacharel em Literatura e Especialista em Estética e História da Arte. Mestre em Estudos Literários, cursa o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor dos livros “Dicionário Proust”, “Proust e a História” e “Opção Crítica”.