O filme da Netflix que está mudando a vida das pessoas — e pode mudar a sua também Divulgação / Netflix

O filme da Netflix que está mudando a vida das pessoas — e pode mudar a sua também

Certos vínculos, por mais instintivos que pareçam, não se fundam no tempo ou na biologia. A paternidade — frequentemente idealizada como impulso natural ou papel conquistado com o nascimento dos filhos — pode, em muitos casos, ser um gesto de construção tardia, quase arqueológica. Há pais que chegam atrasados às próprias histórias, convocados não por laços afetivos bem sedimentados, mas por um chamado abrupto, estranho e, por vezes, violento. Entre realismo emocional e fabulação fantástica, duas obras contemporâneas exploram esse atraso com inteligência e contundência: o filme “O Melhor do Mundo” e a série “Aventuras de Pai”. Apesar de suas linguagens díspares, ambas se lançam sobre o mesmo abismo — o de homens que descobrem a paternidade não como extensão de si, mas como terreno estrangeiro, onde cada passo exige tradução e coragem.

No mundo árido e emocionalmente esculpido de “O Melhor do Mundo”, Gabriel, conhecido como Gallo, tem a vida estilhaçada por uma revelação que ignora cronologias e planejamentos. A súbita notícia da existência de um filho o arranca de sua rotina narcísica e o deposita num campo afetivo desconhecido, onde ele não teve sequer o direito de fracassar antes de ser julgado. Já Marcus, em “Aventuras de Pai”, é catapultado para um universo paralelo, visualmente arrebatador e repleto de criaturas surreais, com a missão de reencontrar a filha distante. A transposição de ambientes — do hiperrealismo à fantasia — não dilui a complexidade emocional da jornada. Pelo contrário, revela que o maior desafio desses personagens não está nos obstáculos externos, mas no reencontro com a própria capacidade de se responsabilizar por alguém que os aguardava em silêncio. Em ambos os cenários, o reencontro com o filho ou a filha não é o ápice da narrativa, mas o ponto de partida de uma travessia identitária.

Esses homens são obrigados a lidar com o que nunca souberam nomear. Gallo é um arquétipo da blindagem afetiva: organizou sua vida para evitar o risco da intimidade, refugiando-se no trabalho como forma de anestesia moral. Quando confrontado com Benito, não enfrenta apenas o menino à sua frente, mas também os entulhos emocionais que acumulou ao longo dos anos. Do outro lado da alegoria, Marcus, embora envolto em um universo onírico, vive uma jornada interna igualmente concreta: cada criatura mítica que enfrenta simboliza um pedaço de sua ignorância sobre a paternidade. A fantasia, aqui, é uma lente de aumento que expõe — com camadas de cor, humor e encantamento — a mesma dor que, no drama de Gallo, se insinua em silêncios, olhares interrompidos e frases ditas tarde demais. São narrativas que se recusam a idealizar a figura paterna, optando por desmembrá-la, expô-la, reconstruí-la a partir dos cacos.

Essa recusa ao romantismo fácil é sustentada por estruturas narrativas que evitam atalhos. Tato Alexander, roteirista de “O Melhor do Mundo”, entende que a empatia do público não se conquista com frases de efeito ou cenas lacrimosas, mas com a paciência de uma escavação emocional bem conduzida. O filme demora a aproximar Gallo de Benito justamente porque sabe que a relação, para ser crível, precisa atravessar o deserto das ausências antes de alcançar qualquer tipo de afeto. Do mesmo modo, “Aventuras de Pai” constrói a reconexão entre Marcus e Lily não como resolução automática, mas como processo gradual, feito de erros, sustos e descobertas. A série aposta na alternância entre o cômico e o sensível para manter a densidade emocional sem cair no piegas, criando uma atmosfera que entretém enquanto obriga o espectador a confrontar suas próprias memórias de abandono ou reconciliação.

O que há de mais potente nessas duas narrativas, contudo, é a forma como ambas recusam soluções redentoras. Gallo jamais poderá compensar o tempo que não viveu com Benito, assim como Marcus não desfaz os danos anteriores com a simples boa vontade de um gesto heroico. Ao contrário das histórias que se acomodam em arcos de perdão automático, esses relatos provocam incômodo — e por isso mesmo são honestos. Reconhecem que nem todo laço se reata, nem toda ausência se repara. O que resta é o esforço, esse movimento imperfeito que, mesmo sem garantias, insiste em construir algo com o que sobrou. As paisagens fantásticas de “Aventuras de Pai” e a crueza emocional de “O Melhor do Mundo” conduzem, por rotas opostas, à mesma pergunta: o que significa estar ali quando já não se tem mais o tempo a favor?

As atuações sustentam essa densidade sem recorrer a exageros. Michel Brown, como Gallo, atua com uma contenção que valoriza o não-dito. Sua performance é uma coreografia de hesitações, onde cada gesto carrega o peso do que não foi vivido. Em contraste, os intérpretes de Marcus e Lily trabalham com uma química de altos e baixos emocionais, refletindo uma relação em reconstrução. Os personagens secundários também não funcionam como meros apoios narrativos, mas como agentes transformadores: seja o mentor que desafia Marcus a enxergar sua negligência, seja a figura feminina ausente que, no caso de Gallo, permanece como sombra e enigma, alimentando o mistério emocional que sustenta o roteiro. Em ambas as obras, os coadjuvantes não suavizam os conflitos, mas aprofundam a complexidade das escolhas e das omissões.

Mesmo nos excessos visuais de “Aventuras de Pai” — com seus cenários vívidos, criaturas encantadas e elementos fabulosos —, o que permanece é a urgência do gesto humano. A fantasia não é fuga, mas método. Uma forma de dizer que mesmo as estruturas mais descoladas da realidade ainda carregam verdades reconhecíveis. No caso de “O Melhor do Mundo”, a economia estética reforça a precisão emocional. As cenas não imploram por empatia; elas a conquistam pela sinceridade. O espectador não chora porque foi conduzido ao pranto, mas porque se reconhece nos desencontros, nas tentativas fracassadas, na impotência de quem chega tarde. São obras que, em sua linguagem própria, recusam o conforto da previsibilidade e escolhem o risco da verdade.

É por isso que tanto Gallo quanto Marcus, embora distantes em forma, são irmãos de jornada. Ambos revelam que a paternidade, longe de ser um estado natural, é um território conquistado. E que nem sempre há glória nisso — às vezes, há apenas o reconhecimento de que ainda se pode tentar. A ausência de moral da história é, aqui, um gesto de respeito: essas narrativas não pretendem educar ou corrigir, mas escancarar. Mostram que ser pai não é cumprir um roteiro ancestral, mas ter a coragem de improvisar diante do imprevisível. E que, mesmo quando o tempo parece ter escapado, o esforço por se fazer presente pode, ainda assim, ressignificar tudo. Não como redenção, mas como possibilidade.

Filme: O Melhor do Mundo
Diretor: Salvador Espinosa
Ano: 2025
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★