Existe um tipo específico de indivíduo que parece funcionar à revelia das probabilidades e da lógica comum. Enquanto muitos acumulam competências, disciplina e persistência numa caminhada exaustiva sem qualquer garantia de recompensa, há aqueles cuja trajetória desafia qualquer métrica razoável de mérito. Mesmo entregues a impulsos destrutivos, insensibilidade ética ou puro desleixo, avançam como se empurrados por uma força alheia à racionalidade. Esses sujeitos, embora envoltos em contradições, parecem navegar por entre os escombros de suas próprias ruínas com a serenidade dos invulneráveis. Quando essa energia desorganizada encontra um canal produtivo, pode gerar feitos notáveis. Mas, quando permanece dispersa, transforma tudo à volta em campo minado, onde a mínima fagulha provoca reações em cadeia. Em seu entorno, o temor se alastra como reflexo do instinto coletivo de autopreservação, enquanto a esperança, último item a escapar da caixa já aberta, é reduzida a um exercício de fé.
É nesse terreno ambíguo que Robert Zemeckis ergue suas narrativas com precisão e ousadia técnica. Ao se distanciar de fórmulas fáceis, ele explora camadas menos evidentes de seus personagens, revelando zonas de conflito moral com engenhosidade visual e sonora. Em “O Voo” (2012), Zemeckis revisita temas densos — dependência química, queda moral, dilemas éticos — sob a ótica de um protagonista que jamais se propõe a ser simpático ou exemplar. William “Whip” Whitaker, interpretado com fúria contida e exaustão interior por Denzel Washington, está em colisão direta com tudo que o rodeia: normas profissionais, vínculos familiares, e até a própria lucidez. O diretor, experiente em dissecar a fragilidade disfarçada de solidez — vide “Forrest Gump” ou “Bem-vindos a Marwen” — encontra em Whip uma figura que transpira uma forma de heroísmo às avessas: não redentor, mas perturbadoramente real.
Logo na sequência inicial, o filme impõe seu desconforto como estilo. Whip desperta ao lado de uma comissária, numa ressaca movida a álcool e cocaína, antes de vestir o uniforme e se lançar novamente aos céus. Seu semblante tranquilo contrasta com o abismo ético que o envolve. Na cabine de comando, seu copiloto hesita diante da atitude blasé do comandante — hesitação que se transforma em horror quando a aeronave começa a falhar em pleno voo. É nesse momento que Zemeckis extrai o insólito da tragédia: Whip inverte o avião no ar, desafiando as leis da física e da razão, conduzindo a máquina danificada a um pouso de emergência junto a uma igreja. Das 102 vidas a bordo, 96 sobrevivem. Mas o feito extraordinário, longe de consagrá-lo, acende um outro tipo de inquérito: o da culpa moral. A figura do herói técnico se esfarela diante da figura humana irrecuperavelmente corroída.
A estrutura narrativa do longa desafia o espectador a abandonar julgamentos fáceis. A salvação de Whip não se desenha em linha reta, nem como ideal ético edificante. Ela é posta à prova por personagens que representam extremos da realidade em que ele está imerso. Nicole, ex-viciada e sobrevivente de múltiplos naufrágios pessoais, tenta reconstruir sua própria existência enquanto oferece a ele uma última âncora emocional. Já Harling, o traficante grotesco vivido por John Goodman, encarna uma caricatura cínica da permissividade: mais do que um fornecedor, é um arauto da decadência, que transforma o vício em zona de conforto e identidade. Em meio a esses polos, há momentos de epifania silenciosa — como o encontro entre Whip e um paciente terminal, cena breve e devastadora que coloca o protagonista frente a uma honestidade que ele evita desde sempre: a do fim como impulso de recomeço.
A força do filme não está em erguer arquétipos de regeneração, mas em corroê-los lentamente até que reste apenas o homem nu diante de si. A jornada de Whip, marcada por recaídas e autossabotagens, não propõe redenção como espetáculo. Ela aponta para a crueza do gesto mínimo de assumir responsabilidades, mesmo quando tudo indica que seria possível escapar impune. Zemeckis transforma o ato de dizer a verdade num gesto revolucionário, quase insano, num mundo em que mentir é a prática comum — inclusive para si mesmo. No fundo, “O Voo” questiona se o heroísmo pode nascer da ruína e se a queda, em vez de punição, pode se converter em condição necessária à lucidez. O céu, nesse caso, não é o limite, mas o ponto de ruptura. E a aterrissagem, por mais dolorosa que seja, talvez seja o único modo de retornar à vida com algum traço de inteireza.
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