Estreia hoje: The Last of Us é a melhor série de 2025 — a nova temporada já nasce clássica Divulgação / Max

Estreia hoje: The Last of Us é a melhor série de 2025 — a nova temporada já nasce clássica

O que nos devolve o olhar em “The Last of Us” não é a catástrofe, mas a rachadura que se espalha por dentro. A segunda temporada, ao invés de suavizar os contornos do colapso, os aprofunda com precisão incômoda. Neste território narrativo, não há resgate possível, apenas o prolongamento de um trauma que se infiltra nas relações, nas memórias e nas estruturas de poder. O apocalipse retratado não é um fim, mas uma permanência corrosiva, um presente perpetuamente assombrado por tudo o que não se pode desfazer. A série não oferece um refúgio: ela encena a impossibilidade de retornar ao que nunca foi seguro

A comunidade de Jackson se ergue como tentativa de reconstrução — mas seu verniz de estabilidade estilhaça ao menor toque. O cotidiano que ali se instaurou é atravessado por ausências gritantes, silêncios que não cicatrizam, diálogos quebrados por dores mal acomodadas. Quando Joel tenta, hesitante, elaborar seu passado diante da terapeuta, o que se ouve não é um exercício de cura, mas a confissão de uma culpa irreversível. Nada se reconstrói sobre terreno minado por perdas irreparáveis. O que existe entre Joel e Ellie não é alívio, mas um pacto silencioso com o peso de ter sobrevivido — um acordo sem palavras que sufoca mais do que protege.

É nesse espaço de colapso ético que Abby emerge, não como antagonista ou heroína, mas como uma disrupção moral que não se encaixa em categorias confortáveis. A performance bruta de Kaitlyn Dever não busca identificação: ela a impõe com a brutalidade de quem foi moldada pela perda e pela sobrevivência. Abby não confronta Ellie — ela a espelha, como se a violência de uma existisse para completar a da outra. Se Ellie busca sentido na destruição, Abby transforma o luto em gesto defensivo, sem jamais abrir mão da contundência. O encontro entre as duas não sugere um embate; sugere uma colisão de dores que se anulam em sua intensidade.

A pergunta que reverbera por trás dos encontros e das ações é incômoda porque resiste a respostas: o que pode restar da justiça quando até sua linguagem foi contaminada pelo medo? Personagens como Dina e Isaac não servem como apoio narrativo, mas como eixos autônomos de tensão. Dina recusa a lógica da superação, insistindo em um modo de existir que acolhe a contradição. Sua presença não alivia; intensifica. Já Isaac é o rosto do autoritarismo racionalizado: um homem que transforma traumas em sistemas, convicções em táticas, compaixão em perigo. Ele não lidera, subjuga — com a legitimidade de quem já perdeu tudo e não pretende perder mais nada.

Ao ultrapassar os limites de uma adaptação convencional, a série propõe um desafio formal: como manter a densidade sensorial de um jogo quando o espectador está, por definição, fora da ação? A resposta está no esmero visual que transforma cada enquadramento em posicionamento ético. A direção não filma; acusa. Há, nos silêncios, na luz rarefeita e nos planos longos, um compromisso com a inquietação. A presença renovada dos infectados, agora mais orgânicos e menos caricatos, atua como expansão do trauma, não como simples ameaça. O horror não está no que se vê, mas no que se repete — como se a violência não fosse exceção, mas continuidade inevitável.

Há um episódio de intervalo, situado entre as temporadas, que encapsula esse mal-estar latente. Ele se move entre afeto e antecipação da catástrofe, como se dissesse: mesmo na doçura, já há algo irrecuperável. A série é hábil em extrair da quietude a sua força mais cortante. Quando os corpos não se movem, as palavras falham. E o que sobra é o insuportável da espera. Em Seattle, a geografia da guerra civil serve como cartografia da decomposição moral. Cada esquina revela a falência de um código. A cidade não representa mudança, mas deslocamento de angústia. E se antes havia uma decisão monumental — salvar alguém ou salvar o mundo —, agora há apenas escolhas que perdem sentido antes mesmo de serem feitas.

Não há mais épico, há repetição. Vingança gera vingança, e o perdão é não só improvável, mas disfuncional. A série subverte toda pedagogia do trauma: não se aprende com ele, apenas se carrega. A culpa, quando aparece, não redime — apenas paralisa. O espectador, privado de respostas, é forçado a ocupar uma posição incômoda: sentir com os personagens, mas também contra eles. A dor não vem das perdas, mas da recusa em transformá-las em lições. É essa recusa que desloca “The Last of Us” para outro patamar: um campo onde a empatia não é conforto, mas armadilha.

O maior gesto de coragem dessa temporada é não tentar consolar. Em tempos saturados por narrativas que alisam a realidade ou oferecem escapes fantasiosos, a série caminha no sentido oposto: ela intensifica. Não suaviza as arestas nem propõe resoluções que embalem o sono. Sua estética é impecável, mas nunca gratuita — do desenho de som à trilha cortante de Gustavo Santaolalla, tudo conspira para tensionar, não para aliviar. As decisões visuais não embelezam o caos; revelam sua intimidade. E é nesse choque entre forma e abismo que a série encontra sua identidade mais contundente.

O desconforto, aqui, não é efeito colateral. É a escolha fundamental. Em vez de prometer superações, o que se constrói é um campo minado de dilemas insolúveis. Não se trata de sobreviver — trata-se de entender o custo de continuar. “The Last of Us” não é uma temporada sobre respostas, mas sobre persistência diante do irrespondível. Não quer ser lembrada como modelo de adaptação, nem como realização técnica. Quer ser sentida como um abalo. Não se assiste a essa série; atravessa-se. E quem sai do outro lado já não é o mesmo.


Série: The Last of Us — Segunda Temporada
Criação: Craig Mazin e Neil Druckmann
Ano: 2023-2025
Gêneros: Ação/Drama/Ficção Científica/Thriller
Nota: 10/10