Na vastidão moral e física do Velho Oeste — já enfraquecido, porém não extinto — Clint Eastwood esculpe em “Os Imperdoáveis” uma elegia desconfortável, em que a decomposição dos mitos é menos uma desconstrução que uma exposição em carne viva. O filme começa onde outros encerram: não no apogeu da lenda, mas em seu crepúsculo, quando os pistoleiros passaram a ser seguidos por escribas, não para serem temidos, mas documentados. Nesse cenário, William Munny emerge não como herói ou vilão, mas como um homem erodido pelo tempo e por suas próprias escolhas, acorrentado ao passado por um nome que se tornou insuportável até para si mesmo. Seu silêncio não é contemplativo: é uma negação contínua, um esforço quase patético de alguém que aprendeu a se esconder dentro da própria culpa.
Há, entretanto, uma ironia cruel na maneira como Eastwood estrutura essa tentativa de apagamento. A figura de Munny, apresentada como exausta, tropeçante e domesticada pela memória de uma mulher que lhe ensinou a abandonar a brutalidade, acaba sendo reconvocada à cena para cumprir, com exatidão, os mesmos rituais de sangue que o definiram. O faroeste, ao qual o filme finge se despedir, recusa a aposentadoria e exige mais uma exibição de fúria, ainda que revestida de hesitação. É aí que o longa revela sua farsa mais inteligente: o revisionismo que se diz crítico, mas que se alimenta da própria iconografia que simula contestar. Munny volta ao cerne do gênero não como exceção, mas como reafirmação — e se há algo que o filme quer destruir, ele o faz recriando-o em moldes levemente corrompidos, mas imediatamente reconhecíveis.
A corrosão ética não está apenas nos gestos de violência, mas nas justificativas que os sustentam. O Schofield Kid, cego de arrogância juvenil, encarna o desespero de um tempo em que os homens passaram a fabricar suas próprias lendas porque não havia mais espaço para merecê-las. Sua bravata se dissolve diante da realidade do assassinato, revelando um corpo que treme, olhos que não suportam o que veem e uma alma incapaz de absorver o ato que acabou de cometer. O crime não é mais um rito de passagem, mas um erro irreparável. Já Ned Logan, amigo leal de Munny, funciona como um fantasma deslocado da história americana: é um homem negro, doze anos após a Guerra Civil, cuja presença o roteiro insiste em não racializar, como se a brutalidade que sofre pudesse ser entendida como genérica e não sintomática. A omissão salta mais alto que o grito: o revisionismo ocidental ainda prefere o incômodo da sugestão à coragem do enfrentamento direto.
A figura de Little Bill Daggett é talvez a mais cínica do tabuleiro. Ele acredita estar fundando uma nova ordem, onde a lei substitui o caos, mas sua noção de justiça não passa de um código de autopreservação. É um homem que bate em forasteiros e acoberta os crimes de amigos locais, sob a lógica perversa de que proteger a cidade exige arbitrariedades. Ao construir sua própria casa à beira do rio, sonha com uma civilização moldada por sua imagem, mas seu projeto ruirá pela mesma violência que usou para erguê-lo. A frase final — “Eu estava construindo uma casa” — é o epitáfio não só de sua vida, mas de uma visão inteira de mundo. Munny, ao responder que “merecimento não tem nada a ver com isso”, fecha o ciclo com uma sentença que soa definitiva, mas deixa uma interrogação que reverbera: e se tiver?
Ao contrário do que muitos esperariam de uma obra derradeira, “Os Imperdoáveis” não entrega consolo. Ele multiplica desconfortos, sobretudo ao permitir que seu protagonista retome a persona imortal de justiceiro no clímax — uma cena coreografada com lentidão hipnótica, em que a escuridão funciona menos como ambientação e mais como sintoma. Não se trata mais de matar para corrigir injustiças, mas de matar porque é o que se sabe fazer. Eastwood monta seu cavalo como quem aceita um destino inescapável, e a trilha sonora silenciosa não celebra, apenas acompanha o inevitável. É nesse paradoxo — de querer recusar a lenda e, ao mesmo tempo, reafirmá-la com primor técnico e narrativo — que reside a força magnética do filme.
Contudo, a grande potência de “Os Imperdoáveis” talvez não esteja no que denuncia, mas na forma como dramatiza a impossibilidade da expiação. O passado não é redimido; é apenas reciclado em novas roupagens, e o que se oferece ao espectador é uma ilusão de julgamento moral. Eastwood, ator e diretor, parece consciente disso: cada vez que Munny falha em montar seu cavalo ou tropeça na lama, somos levados a crer que aquele mito foi desconstruído — mas no fim, quando ele atravessa as portas do bar e executa uma matança meticulosa, entendemos que nada se perdeu, apenas se disfarçou. “Os Imperdoáveis” tenta se afastar daquilo que consagrou seu criador, mas o faz retornando ao centro, como se o próprio gênero se recusasse a morrer, mesmo quando se declara em ruínas.
Nesse jogo de forças — entre a lenda e a desilusão, entre a compaixão e a crueldade — o filme constrói um espelho distorcido do próprio cinema americano, que há décadas tenta repensar seus símbolos sem realmente abandoná-los. O que “Os Imperdoáveis” nos oferece, portanto, é um simulacro do luto, uma confissão pela metade, uma elegia interrompida por tiros. Se o faroeste foi, durante tanto tempo, o retrato do privilégio branco armado de razão, aqui ele retorna com a consciência de seus excessos — mas ainda com o dedo no gatilho. Munny parte sob a chuva como um fantasma que se recusa a desaparecer, deixando para trás não redenção, mas um rastro de silêncio, culpa e ambiguidade. É esse o verdadeiro legado do filme: não o fim de uma era, mas a constatação de que os mitos americanos sabem se disfarçar melhor do que qualquer um.
★★★★★★★★★★