A ideia de um gênio em declínio costuma alimentar fantasias redentoras ou narrativas de decadência espetacular. “A Pura Verdade” escapa habilmente dessas armadilhas ao mergulhar nos últimos anos de William Shakespeare, não como quem investiga um mito, mas como quem interroga a ossatura emocional que resta quando o teatro da glória se apaga. A combustão do Globe Theatre em 1613 sela mais do que o fim de uma carreira: inaugura um exílio involuntário, um retorno forçado a uma casa que nunca fora lar, uma tentativa tardia de preencher lacunas deixadas pela ausência. Ao evocar esse momento com melancolia sóbria e senso estético acurado, Kenneth Branagh, que também assina a direção, projeta sua própria obsessão shakespeariana em um retrato minucioso e desarmado do Bardo. Não há aqui grandiloquência ou reverência vazia: o Shakespeare de Branagh é um homem em ruínas que tenta — talvez pela primeira vez — lidar com o que não foi escrito.
A tensão que atravessa o reencontro familiar tem a temperatura do ressentimento acumulado. Anne Hathaway, interpretada com solidez quase telúrica por Judi Dench, já não se ocupa de manter aparências nem de fingir saudades. As filhas, Susanna e Judith, viveram o luto por Hamnet sem o pai — e aprenderam a se bastar emocionalmente. Quando Shakespeare decide plantar um jardim em memória do filho morto, Anne o corrige com precisão implacável: aquele gesto não é de luto, é de autopiedade. Essa fratura entre a expressão artística e o compromisso afetivo estrutura o filme com uma complexidade rara: o homem que dominava a palavra tropeça diante das emoções que evitou nomear por uma década. A dor que poderia unir os sobreviventes apenas evidencia o abismo que a fama cavou em silêncio, tijolo por tijolo.
Ben Elton, mais conhecido por explorar o humor absurdo da era elisabetana em séries como “Upstart Crow”, assina aqui um roteiro que abandona a sátira em favor da introspecção. As lacunas históricas da vida de Shakespeare são ocupadas com contenção e plausibilidade, jamais com delírio. O enredo avança como um sussurro, estruturado não por reviravoltas, mas por microtensões: o julgamento moral contra Susanna, acusada de adultério, expõe o puritanismo que contaminou Stratford após as reformas religiosas; o incômodo da filha Judith com o luto seletivo do pai explicita a ferida da preferência velada pelo irmão morto; e o constrangimento diante do Conde de Southampton, vivido por Ian McKellen, evidencia o peso das relações atravessadas por desejo, status e impossibilidades. Cada um desses episódios funciona como um espelho deformado que obriga Shakespeare a encarar não o que foi, mas o que não teve coragem de ser.
O encontro com Southampton, em particular, é arquitetado como um duelo silencioso entre admiração e desprezo. McKellen, em uma performance meticulosamente cruel, oferece a Shakespeare uma cortesia envenenada: elogia seus versos com entusiasmo estratégico, apenas para esvaziá-los com a distância intransponível imposta por seu título nobiliárquico. Quando Shakespeare, embalado pelo afeto não dito, se arrisca numa confissão hesitante, é imediatamente esmagado por um sorriso condescendente — o tipo de gesto que não precisa de palavras para humilhar. Essa cena não apenas condensa as contradições entre arte e classe, mas também explicita o limite entre ser celebrado e ser aceito. Shakespeare pode ter escrito sobre a condição humana como poucos, mas entre os homens reais, ainda tropeçava.
Branagh, sob uma máscara que oculta o rosto mas não a fragilidade, investe em um Shakespeare menos sábio e mais humano, menos iluminado por seu legado e mais obscurecido por seus equívocos. Sua atuação é de uma contenção reveladora: a emoção não explode, infiltra-se. A química com Dench escapa à literalidade dos fatos biográficos e alcança uma verdade mais instintiva. Já Kathryn Wilder e Lydia Wilson conferem às filhas de Shakespeare dimensões que vão além da função narrativa: são mulheres que reivindicam a história de suas dores e recusam o papel de coadjuvantes no teatro familiar. A imagem final que o filme constrói, com seus tons outonais e silêncios eloquentes, não é a de um homem reconciliado com o mundo, mas de alguém que finalmente compreende que o perdão dos vivos exige mais do que metáforas.
“A Pura Verdade” não tenta provar que Shakespeare foi alguém que poderíamos reconhecer, mas nos desafia a admitir que, talvez, ele fosse alguém que nunca quisemos enxergar. O dramaturgo que criou arquétipos universais é aqui apenas um pai distraído, um marido distante, um sujeito em busca de redenção. E é precisamente nessa desconstrução que reside a força do filme. Ao rebaixar a lenda à estatura de um homem falho, Branagh e Elton não o diminuem: oferecem a ele — e a nós — a chance rara de entender que até mesmo os grandes precisam, vez ou outra, escutar as verdades que deixaram de escrever.
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