No coração gelado do Ártico canadense, onde a neve nunca abandona o chão e o vento parece sussurrar as dores do passado, “Ao Norte do Norte” constrói uma narrativa surpreendentemente calorosa sobre pertencimento, identidade e reconstrução pessoal. Com ambientação em Ice Cove, uma vila remota em Nunavut, a série rompe o exotismo fácil que muitas vezes recai sobre comunidades indígenas, investindo numa abordagem íntima e respeitosa, feita por quem realmente conhece o território que retrata. Siaja, a protagonista, emerge como uma mulher de 26 anos em processo de redescoberta, recém-separada de um marido arrogante e celebridade local, enquanto tenta equilibrar a maternidade, a busca por um lugar profissional e as feridas herdadas da própria história familiar. Seu retorno à casa da mãe, Neevee, uma mulher marcada pelo alcoolismo e pela reputação controversa, estabelece o terreno emocional da série, onde o afeto se enreda com traumas antigos, e onde cada gesto carrega a ambivalência de laços que ferem e sustentam.
A série não escapa às estruturas conhecidas da comédia romântica e das sitcoms de cidade pequena, mas recusa o lugar-comum pela via da especificidade. A Ice Cove de “Ao Norte do Norte” não é um cenário genérico: é uma comunidade viva, com festas de primavera organizadas com esforço coletivo, abaixo-assinados para ampliar a programação cultural e partidas de “beisebol do pênis de morsa”, em que um osso gigante substitui o taco. Os figurinos exuberantes — criados por artesãos inuítes —, os diálogos que alternam inuktitut, inglês e gírias locais, e os embates entre políticas coloniais e vozes indígenas tornam a série uma obra de resistência sutil, sem jamais abandonar o humor. Há uma elegância na maneira como ela incorpora a espiritualidade inuíte — como na aparição subaquática da deusa Nuliajuk — e confronta, com dignidade e delicadeza, o legado das escolas residenciais, sem que isso comprometa o tom afetuoso e frequentemente bem-humorado da trama.
Siaja, interpretada com brilho por Anna Lambe, é uma heroína que deseja algo além dos papéis predefinidos de esposa, filha e mãe — embora não renegue nenhum deles. Seu enfrentamento com Helen, a gestora branca de espírito entusiástico e compreensão limitada da realidade local, é um embate entre cosmologias: a do “salvador externo” bem-intencionado e a da mulher indígena que, mesmo tropeçando, reivindica sua autonomia dentro da própria cultura. A nomeação de Siaja como assistente executiva é tanto um gesto cômico — dado o histórico desastroso de Helen com funcionários — quanto um marco simbólico na trajetória de uma personagem que precisa reaprender a nomear o que vê e o que deseja. E enquanto ela tropeça em flertes com Alistair e Kuuk, descobre verdades inesperadas sobre sua origem e se permite rir, errar e tentar de novo, a série vai desenhando com ternura um retrato da fome universal por conexão, por reconhecimento e por pequenas alegrias diárias.
Entre lapsos de realismo mágico, situações burocráticas absurdas e cenas tocantes de intimidade doméstica, “Ao Norte do Norte” revela que nenhuma dor é simples quando atravessada pela história, e nenhum gesto de amor é irrelevante quando feito sob temperaturas negativas e séculos de apagamento cultural. O roteiro aposta na espontaneidade dos diálogos e em silêncios que dizem mais do que confrontos diretos. Neevee e Siaja não precisam resolver tudo de forma explícita; a cumplicidade entre elas pulsa em olhares, em pequenas ajudas no armazém, nas broncas disfarçadas de ironia. O mesmo vale para o núcleo comunitário, onde os funcionários públicos entediados, os vizinhos fofoqueiros e os anciãos sábios compõem um mosaico relacional onde cada um carrega uma versão de resistência e ternura.
“Ao Norte do Norte” escolhe não explicar tudo — e nisso reside grande parte de seu poder. A ausência de didatismo permite que a cultura inuíte respire por si mesma, sem a mediação constrangedora de um olhar estrangeiro. É também uma série sobre a precariedade: há buracos nas paredes dos escritórios, bolhas de água no teto e um permafrost cada vez menos permanente. Mas, longe de romantizar o abandono, a série transforma essas falhas em metáforas de uma comunidade que insiste em criar beleza e laços, apesar dos escombros. Não há grandes epifanias, mas há um sorriso que resiste no rosto do espectador — como uma fogueira acesa no meio da tundra, aquecendo lentamente tudo o que toca.
Série: Ao Norte do Norte
Criação: Stacey Aglok MacDonald e Alethea Arnaquq-Baril
Ano: 2025
Gêneros: Comédia
Nota: 8/10