Com tantos filmes inflacionados com desfechos previsíveis, “Prisioneiro do Caos” escapa pelas frestas como uma anomalia bem-vinda. A comédia criminal sueca, disponível na Netflix, é um remake do longa Strul” (1988), de Jonas Frick, não como uma mera atualização, mas como um reposicionamento completo da lógica de seu gênero. Nas mãos de Jon Holmberg, o absurdo não é um efeito cômico gratuito: é a espinha dorsal de uma crítica silenciosa, mas implacável, à fragilidade das instituições e ao acaso que rege destinos comuns.
No centro da história está Conny, um técnico em eletrônicos que vive entre a mediocridade do cotidiano e as ruínas de um divórcio recente. A súbita acusação de homicídio, tão infundada quanto devastadora, o arrasta para uma espiral de eventos que subvertem tanto sua identidade quanto a lógica ao seu redor. Interpretado com veracidade desconcertante por Filip Berg, Conny não é um herói nem um bufão — é um homem comum lançado em uma realidade que já não reconhece. E é justamente nessa indefinição que a performance encontra sua força: Berg alterna com fluidez entre o ridículo e o trágico, compondo um personagem cuja impotência ressoa com desconforto e empatia.
Holmberg recusa qualquer fetichização da desgraça. Ao invés disso, transforma cada tropeço narrativo em uma oportunidade para revelar o quanto o sistema — jurídico, social, afetivo — se sustenta sobre mecanismos frágeis e facilmente corrompíveis. A leveza com que essas tensões são encenadas não diminui sua gravidade; pelo contrário, intensifica o efeito de estranhamento. É nesse equilíbrio entre comicidade e inquietação que reside o mérito da direção: o filme não força o riso, mas o faz emergir do desalinho entre o que esperamos que aconteça e o que, de fato, acontece.
O roteiro, assinado por Tapio Leopold em parceria com o próprio Holmberg, não se apoia em piadas fáceis nem em reviravoltas mirabolantes. O humor brota do cotidiano deformado, de diálogos atravessados por silêncios significativos, e de encontros improváveis que parecem saídos de um pesadelo burocrático. Tudo parece fora de lugar, mas nada soa falso. Há uma lógica interna — tão absurda quanto coerente — que sustenta o universo de “Prisioneiro do Caos”. Esse é um mundo em que a seriedade das autoridades contrasta com a grotesca ineficiência de seus procedimentos, e onde a inocência é, paradoxalmente, o maior fardo.
A construção dos personagens secundários contribui decisivamente para essa atmosfera. Amy Deasismont, como a investigadora Diana, recusa o arquétipo da policial durona e assume um papel mais inquietante: o da voz dissonante que desafia o conformismo institucional. Sua busca pela verdade é atravessada por ambiguidades morais e pessoais, tornando-a mais crível do que heroica. Eva Melander, como a inspetora-chefe Helena Malm, oferece o contraponto burocrático necessário, dando corpo ao peso do sistema e às escolhas que ele impõe. Ambas constroem, com nuances, um jogo de forças que mantém o espectador em constante estado de incerteza.
A montagem é outro trunfo: há um ritmo inquieto, quase claustrofóbico, que empurra a narrativa para frente mesmo quando tudo parece paralisado. A duração enxuta — 98 minutos — não compromete a complexidade da trama, e cada nova sequência acrescenta camadas de ironia ou desespero à jornada de Conny. Holmberg conduz o espectador como quem monta um quebra-cabeça com peças ligeiramente tortas: a imagem final nunca é nítida, mas o processo de montagem é, por si só, fascinante.
O que torna “Prisioneiro do Caos” particularmente instigante é a sua recusa em proporcionar catarse. Não há alívio pleno, nem redenção retumbante. O filme aposta em uma lógica anticlimática, na qual o desfecho importa menos do que os deslocamentos que ele provoca ao longo do caminho. O espectador ri — mas é um riso que vem carregado de estranheza, como quem percebe que algo essencial está errado, embora não saiba exatamente o quê. O humor, aqui, não é um escape; é uma lente que amplia a disfuncionalidade de sistemas que fingimos compreender.
Mais do que uma comédia criminal, “Prisioneiro do Caos” é um retrato sutil e corrosivo da precariedade contemporânea: um mundo onde a verdade é maleável, os culpados são escolhidos por conveniência e a justiça parece um teatro improvisado em que todos seguem papéis mal ensaiados. É nesse cenário que o filme provoca — sem nunca pregar — uma reflexão sobre as formas silenciosas de violência que espreitam o cotidiano.
A pergunta que fica não é “quem matou?”, mas “como chegamos até aqui?”. E essa pergunta é o maior sucesso de um filme que escolhe perturbar em vez de confortar, e que ri não porque tudo está bem, mas porque talvez essa seja a única resposta possível diante do caos.
★★★★★★★★★★