A nova temporada de The Last of Us não deixa dúvidas: nenhuma série chegou perto em 2025 Divulgação / Max

A nova temporada de The Last of Us não deixa dúvidas: nenhuma série chegou perto em 2025

Nos bastidores de um mundo consumido pelo colapso, “The Last of Us” retorna para sua segunda temporada sem buscar redenção, mas oferecendo um espelho trincado onde o espectador vê refletidos os dilemas que prefere não encarar. Aqui, o apocalipse não é uma metáfora vaga nem pano de fundo genérico: é um estado psicológico permanente, um território onde toda tentativa de normalidade é contaminada pela memória do sangue. A série abandona qualquer ilusão de fechamento narrativo para propor uma travessia incômoda, em que os escombros exteriores espelham fraturas internas.

Jackson, a cidade-refúgio onde Joel e Ellie se assentaram cinco anos após a chacina que marcou o final da primeira temporada, não é um recomeço, mas uma pausa ilusória. O que se construiu ali — estrutura, rotina, até governo — não dissolve os silêncios que corroem a relação entre os dois. Há mais peso nos diálogos truncados entre pai e filha adotivos do que nas ruínas do mundo ao redor. E quando Joel se senta diante de Gail, a terapeuta alcoólatra, sua tentativa de elaborar o trauma se confunde com a impotência diante de um passado irredimível. Em “The Last of Us”, não é o fim do mundo que assombra, mas o que ainda sobra dele.

É nesse território de ruína emocional que desponta Abby, não como vilã ou heroína, mas como uma dissonância ética que rasga qualquer expectativa de estabilidade moral. A performance visceral de Kaitlyn Dever se recusa a solicitar empatia; ela a impor. Abby não é antagonista de Ellie: é seu reflexo distorcido, sua consequência em carne viva. E enquanto Ellie avança guiada por uma raiva que só encontra sentido no confronto, Abby arrasta consigo a certeza de que o luto pode ser transformado em proteção. O encontro entre essas duas forças não deseja um duelo tradicional, mas uma implosão mútua que vai muito além do combate físico.

Há, na trajetória de ambas, uma pergunta que a série insinua sem nunca responder: é possível reivindicar justiça quando o próprio conceito de justiça foi dilacerado? Ao redor delas, figuras como Dina e Isaac não orbitam como satélites previsíveis, mas como sofridas em movimento. Dina, interpretada com energia e delicadeza por Isabela Merced, traz à narrativa uma tonalidade que recusa tanto o escapismo romântico quanto o papel de rompimento dramático: ela existe, contraditória e autônoma, como alguém que ilumina ao negar a dor, mas ao habitá-la com outro tipo de coragem. Já Isaac, vivido com brutal contenção por Jeffrey Wright, corporifica a lógica do fim: é a institucionalização do trauma como método de controle, a política do medo com rosto humano.

Ao extrapolar o escopo de uma adaptação, a série impõe à linguagem televisiva um desafio raro: como traduzir a intensidade subjetiva de uma experiência interativa para um formato que exige distanciamento? A resposta é no rigor estético que transforma cada quadro em comentário narrativo. A câmera de “The Last of Us” não apenas captura a ação; ela é um interrogatório. A iluminação, os silêncios, a composição de cena — tudo colabora para forjar uma atmosfera em que a beleza convive com as opções. O horror dos infectados, agora finalmente mais presente após críticas à deficiência na temporada anterior, funciona menos como ameaça exterior e mais como extensão da própria lógica da série: violência aqui é consequência, não fetiche. E ainda que os confrontos entre humanos e monstros tragam ecos épicos dignos de “Game of Thrones”, o que realmente dilacera são os momentos em que nada explode — apenas a verdade, em sua forma mais crua, escapada por entre palavras mal ditas. Há um episódio, situado nos anos entre uma temporada e outra, que sintetiza essa ambiguidade com precisão cirúrgica: em meio ao que poderia ser ternura, há o prenúncio da tragédia. A série sabe que o que realmente traumatiza não é o que já aconteceu, mas o que ainda pode acontecer.

E quando a narrativa migra para Seattle, não se trata de mudar o cenário — mas de subverter o próprio eixo moral da história. Uma cidade marcada por conflitos entre facções e dilacerada por dinâmicas de poder funciona como um laboratório ético em que cada decisão tem peso, cada escolha deixa cicatriz. Se a primeira temporada oferece ao espectador um dilema concentrado — salvar o mundo ou salvar alguém —, a segunda amplia esse impasse até esvaziá-lo de qualquer resposta satisfatória. O jogo moral se fragmenta: não há mais heróis com dilemas trágicos, mas sobreviventes com fardos que já não cabem em definições binárias.

A sequência de acontecimentos se desenrola como uma espiral de respostas inconclusas, onde cada vingança alimenta a próxima e a empatia se torna não um valor, mas uma ameaça. O que se estabelece é um ciclo onde o perdão não redime e a culpa não ensina. A série se recusa a respeitar o sentido ao sofrimento — e é justamente aí que a sua consciência narrativa atinge o auge. O espectador, privado de qualquer manual emocional, é solicitado a sentir com os personagens, mas também contra eles. “The Last of Us” não deseja que você aperte; desejo que você questione por que está torturando.

Talvez o feito mais inquietante desta temporada seja sua recusa em oferecer qualquer forma de anestesia emocional. Em um momento histórico saturado de escapismos e anestesias digitais, uma série se impõe como um gesto de resistência: ela não procura consolar, mas confrontar. Ao apostar em uma narrativa que acumula perdas em vez de resoluções, “The Last of Us” desmonta a lógica do entretenimento como zona de conforto. Mesmo diante da excelência técnica — visível em cada elemento da produção, da música de Gustavo Santaolalla ao design orgânico que transforma o mundo em um personagem —, o que permanece é o desconforto.

E é nesse desconforto que reside sua relevância. Em vez de oferecer novidades frescas, a série expõe fraturas; em vez de prometer que tudo vai melhorar, pergunta se apoiaremos continuar quando não melhorar. O que se desenvolve aqui é mais do que uma temporada de televisão: é uma experiência moral sustentada por camadas de ambiguidade e densidade emocional. “The Last of Us” não quer ser lembrado como um sucesso de adaptação, mas como uma provocação irrecusável — aquelas que você não assiste, mas carrega.


Série: The Last of Us — Segunda Temporada
Criação: Craig Mazin e Neil Druckmann
Ano: 2023-2025
Gêneros: Ação/Drama/Ficção Científica/Thriller
Nota: 10/10