Nos bastidores de um mundo consumido pelo colapso, “The Last of Us” retorna para sua segunda temporada sem buscar redenção, mas oferecendo um espelho trincado onde o espectador vê refletidos os dilemas que prefere não encarar. Aqui, o apocalipse não é uma metáfora vaga nem pano de fundo genérico: é um estado psicológico permanente, um território onde toda tentativa de normalidade é contaminada pela memória do sangue. A série abandona qualquer ilusão de fechamento narrativo para propor uma travessia incômoda, em que os escombros exteriores espelham fraturas internas.
Jackson, a cidade-refúgio onde Joel e Ellie se assentaram cinco anos após a chacina que marcou o final da primeira temporada, não é um recomeço, mas uma pausa ilusória. O que se construiu ali — estrutura, rotina, até governo — não dissolve os silêncios que corroem a relação entre os dois. Há mais peso nos diálogos truncados entre pai e filha adotivos do que nas ruínas do mundo ao redor. E quando Joel se senta diante de Gail, a terapeuta alcoólatra, sua tentativa de elaborar o trauma se confunde com a impotência diante de um passado irredimível. Em “The Last of Us”, não é o fim do mundo que assombra, mas o que ainda sobra dele.
É nesse território de ruína emocional que desponta Abby, não como vilã ou heroína, mas como uma dissonância ética que rasga qualquer expectativa de estabilidade moral. A performance visceral de Kaitlyn Dever se recusa a solicitar empatia; ela a impor. Abby não é antagonista de Ellie: é seu reflexo distorcido, sua consequência em carne viva. E enquanto Ellie avança guiada por uma raiva que só encontra sentido no confronto, Abby arrasta consigo a certeza de que o luto pode ser transformado em proteção. O encontro entre essas duas forças não deseja um duelo tradicional, mas uma implosão mútua que vai muito além do combate físico.
Há, na trajetória de ambas, uma pergunta que a série insinua sem nunca responder: é possível reivindicar justiça quando o próprio conceito de justiça foi dilacerado? Ao redor delas, figuras como Dina e Isaac não orbitam como satélites previsíveis, mas como sofridas em movimento. Dina, interpretada com energia e delicadeza por Isabela Merced, traz à narrativa uma tonalidade que recusa tanto o escapismo romântico quanto o papel de rompimento dramático: ela existe, contraditória e autônoma, como alguém que ilumina ao negar a dor, mas ao habitá-la com outro tipo de coragem. Já Isaac, vivido com brutal contenção por Jeffrey Wright, corporifica a lógica do fim: é a institucionalização do trauma como método de controle, a política do medo com rosto humano.
Ao extrapolar o escopo de uma adaptação, a série impõe à linguagem televisiva um desafio raro: como traduzir a intensidade subjetiva de uma experiência interativa para um formato que exige distanciamento? A resposta é no rigor estético que transforma cada quadro em comentário narrativo. A câmera de “The Last of Us” não apenas captura a ação; ela é um interrogatório. A iluminação, os silêncios, a composição de cena — tudo colabora para forjar uma atmosfera em que a beleza convive com as opções. O horror dos infectados, agora finalmente mais presente após críticas à deficiência na temporada anterior, funciona menos como ameaça exterior e mais como extensão da própria lógica da série: violência aqui é consequência, não fetiche. E ainda que os confrontos entre humanos e monstros tragam ecos épicos dignos de “Game of Thrones”, o que realmente dilacera são os momentos em que nada explode — apenas a verdade, em sua forma mais crua, escapada por entre palavras mal ditas. Há um episódio, situado nos anos entre uma temporada e outra, que sintetiza essa ambiguidade com precisão cirúrgica: em meio ao que poderia ser ternura, há o prenúncio da tragédia. A série sabe que o que realmente traumatiza não é o que já aconteceu, mas o que ainda pode acontecer.
E quando a narrativa migra para Seattle, não se trata de mudar o cenário — mas de subverter o próprio eixo moral da história. Uma cidade marcada por conflitos entre facções e dilacerada por dinâmicas de poder funciona como um laboratório ético em que cada decisão tem peso, cada escolha deixa cicatriz. Se a primeira temporada oferece ao espectador um dilema concentrado — salvar o mundo ou salvar alguém —, a segunda amplia esse impasse até esvaziá-lo de qualquer resposta satisfatória. O jogo moral se fragmenta: não há mais heróis com dilemas trágicos, mas sobreviventes com fardos que já não cabem em definições binárias.
A sequência de acontecimentos se desenrola como uma espiral de respostas inconclusas, onde cada vingança alimenta a próxima e a empatia se torna não um valor, mas uma ameaça. O que se estabelece é um ciclo onde o perdão não redime e a culpa não ensina. A série se recusa a respeitar o sentido ao sofrimento — e é justamente aí que a sua consciência narrativa atinge o auge. O espectador, privado de qualquer manual emocional, é solicitado a sentir com os personagens, mas também contra eles. “The Last of Us” não deseja que você aperte; desejo que você questione por que está torturando.
Talvez o feito mais inquietante desta temporada seja sua recusa em oferecer qualquer forma de anestesia emocional. Em um momento histórico saturado de escapismos e anestesias digitais, uma série se impõe como um gesto de resistência: ela não procura consolar, mas confrontar. Ao apostar em uma narrativa que acumula perdas em vez de resoluções, “The Last of Us” desmonta a lógica do entretenimento como zona de conforto. Mesmo diante da excelência técnica — visível em cada elemento da produção, da música de Gustavo Santaolalla ao design orgânico que transforma o mundo em um personagem —, o que permanece é o desconforto.
E é nesse desconforto que reside sua relevância. Em vez de oferecer novidades frescas, a série expõe fraturas; em vez de prometer que tudo vai melhorar, pergunta se apoiaremos continuar quando não melhorar. O que se desenvolve aqui é mais do que uma temporada de televisão: é uma experiência moral sustentada por camadas de ambiguidade e densidade emocional. “The Last of Us” não quer ser lembrado como um sucesso de adaptação, mas como uma provocação irrecusável — aquelas que você não assiste, mas carrega.
Série: The Last of Us — Segunda Temporada
Criação: Craig Mazin e Neil Druckmann
Ano: 2023-2025
Gêneros: Ação/Drama/Ficção Científica/Thriller
Nota: 10/10