Filme na Netflix, inspirado em um dos maiores clássicos da literatura mundial, vai te fazer querer ficar em casa neste final de semana Divulgação / Miramax

Filme na Netflix, inspirado em um dos maiores clássicos da literatura mundial, vai te fazer querer ficar em casa neste final de semana

Não é necessário que um personagem morra para que se questione sua permanência no imaginário popular — às vezes, basta que ele envelheça. “Sr. Holmes” parte dessa premissa provocadora: o que resta de um símbolo quando sua mente já não acompanha o mito? A figura do detetive infalível, moldada por mil representações, é transfigurada em algo radicalmente humano. Ian McKellen, em um exercício interpretativo de minúcia e alcance, encarna não o Sherlock de gestos fulminantes, mas aquele que hesita, esquece, silencia. A narrativa conduzida por Bill Condon propõe uma reinvenção lenta e crepuscular, mas não menos incisiva: à medida que a lógica do detetive se decompõe, revelam-se as fragilidades soterradas pela lenda — e nelas reside o verdadeiro mistério.

Há uma beleza dissonante na forma como o filme lida com o tempo. Três linhas narrativas se entrelaçam — uma viagem ao Japão, um caso do passado que insiste em não se calar, e a rotina presente em uma casa isolada, rodeada por abelhas e silêncios. O enredo abandona a estrutura clássica de investigação para mergulhar na arquitetura falha da memória, onde as pistas são afetivas, os desvios emocionais e as deduções, inevitavelmente imperfeitas. A montagem transita entre décadas com fluidez poética, evocando o descompasso entre lembrança e realidade. O personagem de Roger, o menino que se torna o interlocutor privilegiado de Holmes, funciona como eixo de uma dialética entre decadência e formação: à medida que o velho detetive regride, o garoto aprende a decifrar o mundo com outras lentes — nem sempre racionais, mas mais agudas do que o próprio mestre ousaria admitir.

O caso de Ann Kelmot, que serve como catalisador da jornada introspectiva de Holmes, não tem a complexidade estrutural dos enigmas tradicionais. Ao contrário, sua força está na simplicidade perturbadora de um fracasso que não se deixa resolver. Ann não é apenas uma mulher em sofrimento; ela é um espelho da cegueira emocional de Holmes, de sua incapacidade em ler os sinais que não cabem na lógica dedutiva. Quando ele enfim confronta essa lembrança — ou o que resta dela —, o que está em jogo não é uma conclusão certeira, mas o reconhecimento de que algumas decisões podem ser tecnicamente corretas e, ainda assim, eticamente devastadoras. Essa consciência tardia, que só se impõe quando as palavras já não fluem com clareza, opera como uma rachadura irreparável na imagem do gênio inabalável.

“Sr. Holmes” tensiona com elegância o conflito entre persona e identidade. O filme assume, desde seus primeiros quadros, uma postura autorreflexiva diante da cultura de fetichização de personagens, ironizando as múltiplas camadas de ficção que se sobrepuseram ao verdadeiro Holmes — ou ao menos àquele que se acredita mais autêntico. O detetive envelhecido se vê diante de uma caricatura sua projetada nas telas de cinema, e a experiência não é de vaidade, mas de deslocamento. Aquele homem que deduzia a origem de uma lama no sapato agora toma chá com uma planta japonesa em busca de memória. Aquele que zombava da superstição agora tateia sentidos nos intervalos entre lapsos. O jogo metalinguístico não é mero ornamento: é uma crítica aguda à mitificação que transforma indivíduos em arquétipos e que, ao fazê-lo, apaga suas contradições mais reveladoras.

Mesmo o cenário — bucólico, ensolarado, quase imaculado — funciona como uma ironia visual: a paz da paisagem contrasta com a tormenta cognitiva de seu habitante mais ilustre. A direção de arte desenha o mundo exterior como um refúgio anestésico, onde cada objeto parece cuidadosamente disposto para amortecer o impacto do que não se pode mais controlar. No entanto, por trás da cortina decorativa, há um embate constante entre lucidez e delírio, entre o desejo de reescrever o passado e a impossibilidade de domá-lo. Holmes não busca justiça ou fama, mas sim um último gesto de coerência com o próprio eu, agora deformado pela erosão do tempo.

O filme não oferece um clímax tradicional, porque entende que a catarse aqui não está em descobrir quem fez o quê, mas sim em compreender por que, mesmo sabendo de tudo, às vezes falhamos. A decadência cognitiva do personagem não é um fim, mas uma travessia desconcertante rumo à empatia. Quando Holmes, com sua fala rarefeita, tenta explicar a Roger o que de fato se passou, não está apenas desenterrando um caso mal resolvido: está, sobretudo, tentando reparar uma omissão afetiva, um gesto que nunca soube realizar quando era intelectualmente soberano. Essa inversão de papéis — o detetive que se desnuda, o menino que observa — compõe uma elegia sutil àquilo que escapa à lógica: a dor, a ternura, o arrependimento.

Em um universo saturado de reinvenções de ícones, “Sr. Holmes” opta por uma ousadia silenciosa: despojar seu protagonista de tudo aquilo que o tornava invencível e, nesse processo, revelá-lo com mais nitidez do que nunca. A pergunta que sustenta o filme não é se ainda precisamos de uma nova versão de Sherlock Holmes, mas se somos capazes de acolher um herói que já não sabe como ser heroico — e que, talvez por isso mesmo, se torne mais real. O resultado não se pretende definitivo, mas desconcertante o bastante para que, ao final, não reste a resposta, e sim uma nova pergunta: o que vale mais — a genialidade inflexível ou a lucidez tardia que reconhece seus limites?

Filme: Sr. Holmes
Diretor: Bill Condon
Ano: 2015
Gênero: Comédia/Drama/Mistério/Thriller
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★