Na Netflix: nova temporada da maior série de ficção científica de todos os tempos — 87% de aprovação e 29 prêmios, incluindo 9 Emmy Awards Divulgação / Netflix

Na Netflix: nova temporada da maior série de ficção científica de todos os tempos — 87% de aprovação e 29 prêmios, incluindo 9 Emmy Awards

A inteligência artificial continua mesmo mais diabólica que santa. Essa é a opinião de Charlie Brooker, o criador de “Black Mirror”, e de Ally Pankiw, a diretora de “Pessoas Comuns”, o primeiro episódio da sétima temporada da série, queridinha de dez entre dez nerds, não necessariamente pela forma, mas decerto pelo conteúdo. De “Pessoas Comuns”, disparado o melhor capítulo da nova fase do programa, escorre uma grossa lava de pessimismo, corroendo tudo o que encontra e fazendo a alegria dos fãs mais ortodoxos. Todos os alertas que Brooker vem dando quanto à natureza vulpina das máquinas capazes de aprender em frações de segundo o que levamos a vida toda para captar.

Nunca serão demais críticas a um mecanismo que, mais cedo ou mais tarde (e, pelo visto, será muito mais cedo do que se pensa), reduzirá seres humanos a meros coadjuvantes de sua história, inventado e gostosamente desenvolvido por outros seres humanos — quanto a isso nenhuma surpresa: homo sapiens sapiens tornamo-nos peritos em devorar-nos uns aos outros desde que o mundo é mundo, e continuamos abrindo caixas de Pandora para muito além do tropo da vetusta mitologia grega —, mas o ponto no texto de Brooker é a solução que o showrunner vislumbra para uma questão que, sem exagero, tem tudo para deflagrar a Terceira Guerra Mundial, com ogivas nucleares saltando de Pyongyang para Teerã, de Teerã para Ancara, de Ancara para Washington, de Washington para Marte, até, finalmente, voltarmos todos à condição de poeira cósmica de onde surgimos, num buraco negro a centenas de milhões de anos-luz daqui. Estou sendo redundante em meu catastrofismo, eu sei. É que esse texto não foi redigido com o ChatGPT.

Para o bem e para o mal, para desespero de reacionários e júbilo de falsos messias, a inteligência artificial instalou-se com todos os seus bits em todos os lugares, e não vai mais embora. Até aí, morreu o Neves; o problema mesmo é pensar que a IA é capaz de suprir as muitíssimas carências da alma humana — e ainda que fosse, qual a necessidade e a conveniência disso, para não falar de detalhes à primeira vista insignificantes, mas fundamentais, como elegância e decoro, e artigos ainda mais escassos nas relações, cuja falta pode acabar em processo ou cadeia, leia-se invasão de privacidade, injúria, calúnia, difamação e segue por aí. Apetrechos tecnológicos são um fetiche cheio de possibilidades, em especial para artistas, e em se tratando de cineastas asiáticos, o céu é o limite, com a licença do trocadilho. 

Em “Pessoas Comuns”, uma professora do ensino fundamental e um metalúrgico suam sangue para dar conta de pagar todas as contas e, entretanto, saem-se muito bem, achando tempo e dinheiro para comemorar o aniversário de casamento num hotelzinho de beira de estrada onde se hospedaram no começo do namoro. Eles não teriam mais nada com que se preocupar e talvez até nunca viessem a travar uma discussão séria caso a vida se mantivesse exatamente dessa maneira, mas, claro, o infortúnio já os espreitava e o destino não tardaria a colocar as garras de fora.

Ela descobre um tumor no cérebro, é operada e só sobrevive porque a Rivermind, uma obscura empresa de assistência médica oferece um plano de prolongamento da vida — sem esclarecer que a paciente seria, na verdade, uma intermediária de anúncios comerciais. O marido se mata de trabalhar para conseguir pagar a extensão da cobertura do plano ou, do contrário, eles nunca poderão ir além de poucos quilômetros da porta da casa. Em outras palavras, o que delicioso pessimismo de Brooker e Pankiw diz-nos é que devemos entender os sinais da vida e deixar que ela faça de nós o que quiser. Cenário muito menos desalentador que colocar nossa pele e nossa sanidade nas mãos invisíveis da big data.


Série: Black Mirror — 7ª temporada
Criação: Charlie Brooker
Ano: 2025
Gêneros: Ficção científica/Thriller 
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.