Karim AïnouzSob o imenso céu do sertão nordestino, onde o azul se perpetua sem prometer chuva, desenrola-se a silenciosa tragédia cotidiana de milhares de mulheres como Hermila — jovens, mães precoces, moldadas por uma realidade que pouco lhes oferece além da repetição. Em “O Céu de Suely”, Karim Aïnouz recusa o espetáculo da violência explícita para mergulhar em um drama íntimo e pungente, situado em Iguatu, pequena cidade cearense onde a esperança é artigo raro e o tempo parece imóvel. Distante das favelas em guerra de “Cidade de Deus” e dos condomínios reluzentes das novelas brasileiras, o filme opta por um retrato nu e cru da vida ordinária, onde o simples desejo de mudar de lugar — não metaforicamente, mas fisicamente — já é um ato de resistência, quase revolucionário. Hermila não é heroína nem mártir: é apenas uma mulher cansada de esperar, cuja juventude conflita violentamente com a estagnação que a cerca.
Ao retornar de São Paulo com o filho nos braços e o coração crivado de frustrações, Hermila reencontra a avó e a jovem tia, suas únicas referências familiares, mas não a segurança emocional que esperava. Mateus, o homem que prometera segui-la, some como tantos outros que evaporam na promessa de uma vida melhor no Sul. Em vez de apoio, ela encontra silêncios e julgamentos; em vez de futuro, a repetição de um ciclo. À noite, afoga a ansiedade entre cigarros, karaokês e conversas com Georgina, uma prostituta local que, diferente dela, já aprendeu a converter o corpo em moeda de sobrevivência. A tensão entre desejo e limite torna-se o motor da narrativa: Hermila quer mais do que a cidade pode oferecer, mas ignora os contornos do preço que pagará por isso. Quando decide rifar o próprio corpo por “uma noite no paraíso”, sob o pseudônimo Suely, não é apenas dinheiro que está em jogo, mas sua dignidade, a tênue aceitação familiar e, sobretudo, a construção de sua identidade.
Aïnouz conduz a história com uma delicadeza austera, em que o calor escaldante e os planos contemplativos moldam uma atmosfera de paralisia existencial. A estética da escassez — emocional, econômica e visual — é um gesto político. A câmera permanece próxima aos rostos, revelando a humanidade dos personagens com uma crueza que dispensa espetáculos dramáticos. Os nomes reais dos atores se misturam aos de seus personagens, dissolvendo as barreiras entre ficção e realidade e sugerindo que, no sertão esquecido por políticas públicas e olhares estrangeiros, cada Hermila carrega em si um fragmento do país que permanece invisível. Não há vilões, apenas ausências: de futuro, de oportunidades, de respostas. O realismo do filme evoca um Brasil que está à margem do progresso, mas que pulsa em cada tentativa de fuga, em cada gesto de inconformismo, por mais confuso ou contraditório que seja.
Nesse microcosmo de abandono e desejo, o corpo de Hermila torna-se território político. Diferente da figura grandiosa de João Francisco em “Madame Satã”, cuja extravagância alimentava a fábula da subversão, Hermila se movimenta de forma hesitante, sem certezas, como quem tateia no escuro. Ainda assim, seu gesto de rifar-se, por mais inconsequente que pareça, é radical em sua proposta: subverter o que lhe resta — o próprio corpo — em instrumento de deslocamento. Ela não quer amar, não quer ser salva por João, o motoqueiro que a idolatra. Quer ir embora. E embora a cidade inteira se insurja contra sua decisão, chamando-a de prostituta, Hermila responde com a lucidez crua de quem não tem tempo para discursos morais: “Prostituta vai com vários. Eu vou com um só.” É nessa simplicidade desafiadora que mora a complexidade do filme — e de Hermila.
A ausência de desfecho categórico — Hermila não encontra a felicidade, nem fracassa completamente — espelha a ambiguidade de quem vive na beira: da cidade, da pobreza, da juventude, da liberdade. A estrada, sempre presente no imaginário do migrante, é a única promessa concreta. Se por um lado Aïnouz repete elementos de sua obra anterior, como a marginalidade e a busca por identidade, aqui ele os filtra por uma lente mais seca, menos performática, mais dolorosamente próxima. Em “O Céu de Suely”, a ausência de movimento é o próprio conflito, e a viagem, por mais breve ou incerta, é o único gesto possível de autonomia.
Hermila não é um caso isolado, mas o retrato de uma estrutura social onde mulheres, especialmente no interior do Brasil, acumulam funções, criam filhos sozinhas, trabalham em subempregos e enfrentam diariamente os limites de uma vida programada para a estagnação. O que o filme propõe, em última instância, não é apenas a história de uma jovem tentando ir embora. É a denúncia silenciosa de um país que empurra seus filhos para longe e que, quando eles tentam sair por conta própria, lhes nega até a legitimidade da escolha. Ao expor essa realidade sem didatismo, sem o sensacionalismo da miséria, Aïnouz nos entrega uma obra que, embora desigual em ritmo e profundidade, carrega uma verdade inescapável: o céu pode ser azul, mas nem sempre promete o paraíso. E às vezes, o simples desejo de partir já é o começo de uma revolução.
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