“Bloodshot” parece, à primeira vista, um equívoco fora de hora — uma tentativa tardia de inserir um herói periférico num palco já superpovoado por ícones consagrados. Mas é justamente nessa condição de intruso que o filme encontra sua singularidade: não por contestar as fórmulas dominantes, mas por aceitá-las com desfaçatez, moldando-as a partir de um protagonista reconstruído — literal e metaforicamente — por mãos industriais. Estrelado por Vin Diesel, que encarna mais uma vez o herói de silêncios pesados e músculos inquebráveis, o longa parte de uma premissa genérica apenas na superfície. Sob camadas de ação pirotécnica, esconde-se um discurso curioso sobre identidade, manipulação e a obsolescência da vontade.
Ray Garrison, militar assassinado e revivido por nanotecnologia, é menos um personagem e mais um experimento narrativo: um homem reduzido à utilidade bélica, um corpo reciclável programado para obedecer. A atuação engessada de Diesel, frequentemente criticada como limitação, opera aqui quase como metáfora involuntária da desconexão entre corpo e consciência — ele não precisa convencer como ser humano, apenas funcionar como engrenagem de uma máquina maior. E quando a estrutura linear da trama se dobra sobre si mesma, revelando que as memórias do protagonista são fabricadas, o filme ensaia sua mais ousada manobra: desmontar a própria ilusão que vendeu ao espectador. Essa virada, embora não inédita no gênero, é executada com precisão suficiente para requalificar o que antes parecia descartável.
A direção, ainda que carente de inventividade estética, compensa em parte suas deficiências com ritmo e domínio técnico. As sequências de ação, embaladas pela trilha pulsante de Steve Jablonsky, têm cadência e espetáculo — não reinventam a roda, mas giram com eficiência. É nas interações entre os personagens secundários que o filme respira melhor: Eiza González injeta carisma em uma figura subaproveitada; Talulah Riley, mesmo com pouco tempo de tela, sugere um universo de tensões não exploradas; e o alívio cômico protagonizado por um engenheiro sarcástico evita o colapso tonal que tantas produções do gênero enfrentam. Guy Pearce, por sua vez, compõe um vilão que não se rende ao exagero: seu cientista é frio, calculista, e mais ameaçador por acreditar sinceramente na utilidade de sua criação.
A produção tropeça ao abdicar do potencial filosófico do material original. Para leitores habituados aos quadrinhos da Valiant, especialmente nas versões de Duane Swierczynski e Jeff Lemire, a adaptação parece anestesiada. Desaparecem as camadas de angústia existencial, as ambivalências morais e o dilema ontológico de um homem que já não sabe se vive ou apenas executa comandos. Em nome da acessibilidade e do apelo comercial, o roteiro opta por diluir a complexidade em favor de uma jornada redentora mais palatável, mas menos provocadora. Essa escolha, embora compreensível, transforma o filme em um híbrido hesitante: muito ruidoso para ser introspectivo, muito superficial para ser memorável.
Ainda assim, há algo de perversamente honesto em “Bloodshot”. Ele não se apresenta como um manifesto artístico nem pretende reinventar a gramática do cinema de ação. Seu valor está em abraçar a própria condição de entretenimento descartável com uma convicção quase libertadora. Em vez de fugir de suas limitações, o filme as converte em estilo: os diálogos simplificados, os vilões estereotipados, a lógica de videogame — tudo compõe um universo coerente em sua artificialidade. E é nesse simulacro que o longa encontra identidade: não no que tem de autêntico, mas no que assume de sintético.
Para além da narrativa, “Bloodshot” serve como retrato de um momento específico da cultura pop: o instante em que o espectador, exaurido por promessas de grandiosidade emocional, parece disposto a aceitar a repetição desde que ela venha com nova embalagem. É o cinema dos algoritmos, das fórmulas moduladas para plataformas de streaming, onde o impacto visual suplanta a construção simbólica e o herói já nasce com manual de instruções. O protagonista de Vin Diesel, imune à dor, à dúvida e à ambiguidade, é o reflexo exato do que o mercado deseja: um corpo funcional que não questiona seu uso.
Mas talvez resida aí o aspecto mais intrigante da obra. Ao apresentar um homem programado para matar e manipulado para sentir o que não viveu, “Bloodshot” não apenas ecoa temas clássicos da ficção científica — como a autonomia do ser diante da máquina —, como também esboça, ainda que timidamente, uma crítica ao próprio espectador, que consome narrativas pré-moldadas com a mesma passividade do herói que as protagoniza. Neste sentido, o filme transcende sua vocação de passatempo explosivo e se insinua como uma parábola involuntária sobre o esvaziamento do sujeito num mundo mediado por códigos.
“Bloodshot” não se mede pela originalidade do enredo nem pela densidade de seus personagens, mas pela sua capacidade de operar como espelho fragmentado da própria lógica cultural que o gerou. Se ele falha como adaptação fiel, acerta ao capturar o espírito de uma era em que até o heroísmo é manufaturado — e, às vezes, basta reconhecer isso para que o supérfluo se torne significativo.
★★★★★★★★★★