Leveza e magia: o filme da Netflix que vai remover o peso do cotidiano e dos problemas Divulgação / Universal Pictures

Leveza e magia: o filme da Netflix que vai remover o peso do cotidiano e dos problemas

Filmes natalinos são, em sua maioria, variações de uma mesma fórmula: conflitos familiares resolvidos por coincidências afetuosas e uma avalanche de espírito festivo artificial. Em meio a essa repetição previsível,  “Genie — A Magia do Natal”, produção do Peacock protagonizada por Melissa McCarthy — adota o disfarce do clichê apenas para subvertê-lo com leveza, inteligência emocional e um senso de humor que recusa a vulgaridade. Inspirado no obscuro, porém cultuado “Bernard and the Genie” (1992), o longa atualiza a premissa sem perder sua essência: a de que milagres reais não se realizam no tapete voador da fantasia, mas nos abismos das escolhas diárias e dos afetos negligenciados.

Bernard, vivido por Paapa Essiedu, não é um herói clássico. Tampouco é um sujeito detestável. Ele representa um arquétipo silencioso do século 21: o homem fragmentado, consumido pelo culto à produtividade, pela culpa crônica da parentalidade ausente e pela impossibilidade de equilibrar vida pessoal e carreira sem falhar em ambas. Seu colapso não é espetacular — é banal, cotidiano, familiar demais para passar despercebido. Ao tropeçar numa relíquia esquecida, Bernard não apenas evoca uma gênia excêntrica, mas também ativa uma metáfora poderosa: a de que, às vezes, é preciso um elemento absurdo para que possamos ouvir aquilo que já sabíamos, mas insistíamos em ignorar.

A gênia Flora, interpretada por McCarthy com uma combinação irresistível de sarcasmo anacrônico e ternura desajeitada, é a chave para desestabilizar a lógica apressada de Bernard. Seus poderes são secundários; o que realmente transforma o protagonista é o confronto com seus próprios desejos. Cada pedido realizado expõe o vazio existencial mascarado por metas tangíveis: status, bens, performance. O roteiro se recusa a entregar redenções instantâneas ou reviravoltas mágicas. O que está em jogo é muito mais complexo — é a reaprendizagem do vínculo, a responsabilidade emocional, a coragem de desistir da fuga fantasiosa para encarar a realidade falha e, ainda assim, cheia de possibilidades.

É curioso notar como o filme entra no contexto natalino sem jamais se render à iconografia exagerada do feriado. Não há trilhas grandiosas ou lições impostas com laços vermelhos. O Natal, aqui, é atmosfera e ausência — tempo suspenso em que o calor da memória contrasta com o frio do distanciamento afetivo. As luzes não brilham para encantar, mas para iluminar o que foi deixado de lado. Trata-se de uma abordagem mais contemplativa, quase melancólica, que torna o milagre possível não porque tudo se resolve, mas porque algo essencial é finalmente compreendido.

Flora não realiza desejos para impressionar. Ela observa, provoca, às vezes erra, e nisso mora sua força: ela não é a resposta mágica, mas a catalisadora da mudança interna. O ápice da história — quando Bernard opta por não utilizar seu último desejo — é, talvez, o momento mais silenciosamente revolucionário da narrativa. Não porque a recusa seja dramática, mas porque simboliza a maturidade de um personagem que compreendeu o valor de arcar com suas consequências. O gesto é antitético ao espírito do consumo imediato que rege não apenas o Natal, mas a vida moderna como um todo.

A presença breve de Luis Guzmán, o retorno de Alan Cumming em papel oposto ao que desempenhou no original e a condução cênica sem excessos contribuem para um equilíbrio notável entre comédia e introspecção. A direção não força lágrimas nem gargalhadas — permite que o desconforto do reencontro com o que deixamos para trás surja sem alarde, mas com potência. Nesse sentido, “Genie” se aproxima mais da tradição de contos filosóficos disfarçados de fábulas do que das comédias familiares típicas do streaming.

É provável que “Genie” passe despercebido por quem busca apenas mais um filme “fofo de Natal”. Mas, para quem se permite atravessar a superfície, o que se revela é uma narrativa sobre o tempo — o que deixamos escapar, o que ainda pode ser resgatado e o que, mesmo irrecuperável, pode ser ressignificado. Não é um filme sobre mágicas. É sobre a lucidez que, às vezes, só a fantasia tem coragem de provocar.

Filme: Genie — A Magia do Natal
Diretor: Sam Boyd
Ano: 2023
Gênero: Comédia/Fantasia
Avaliação: 7/10 1 1
★★★★★★★★★★