Entre Saramago e Dostoiévski: o filme do Prime Video que transforma um suspense existencial em um ataque ao seu juízo Divulgação / A24

Entre Saramago e Dostoiévski: o filme do Prime Video que transforma um suspense existencial em um ataque ao seu juízo

A metafísica, um campo que desde Aristóteles tem sido o palco de debates sobre a essência do ser, encara dois polos em seus mais essenciais questionamentos: a visão do nada absoluto e a de um ser superior, que transcende os limites da experiência humana e física. Para uns, a realidade é nada mais que um ciclo finito, uma sequência de nascimento e morte, onde não existe uma continuidade além dos limites da carne. Para outros, existe uma força cósmica, um princípio criador que rege tanto o universo material quanto o espiritual, uma realidade que apenas aguarda ser percebida.

Essa última abordagem, defendida por pensadores como Aristóteles, concebe a metafísica como uma ciência universal, uma lente através da qual todo o conhecimento humano é filtrado e compreendido, seja nas ciências físicas ou nas reflexões sobre a alma. O desafio, no entanto, surge quando essas questões se tornam palpáveis e desafiadoras, como é o caso do filme “O Homem Duplicado”, de Denis Villeneuve, baseado no romance homônimo de José Saramago. O próprio Villeneuve, mestre da narrativa visual de alta tensão, traz à tona uma reflexão que, como a metafísica, exige do espectador uma interpretação que vai além das primeiras impressões. Aqui, as camadas de significado se desdobram, e o enigma da identidade humana se coloca de maneira inquietante.

A obra cinematográfica toma a forma de uma jornada existencial através da vida de Adam Bell, um professor universitário em Toronto que vive imerso em uma rotina monótona e marcada pela melancolia. A cinematografia de Nicolas Bolduc, com suas nuances de cores terrosas e tons amarelados, sublinha o sentimento de apatia que se apodera de Adam, como se cada aspecto da sua vida fosse um reflexo de uma existência vazia, em que as relações se tornam cada vez mais distantes e sem propósito. Em suas aulas sobre o Império Romano, o desinteresse de seus alunos reflete a desconexão que Adam sente com o mundo ao seu redor.

Em uma conversa com um colega, Adam é persuadido a assistir a um filme, um momento trivial que, no entanto, desencadeia uma série de eventos que abrem um abismo existencial. Ao assistir ao filme, ele se depara com a imagem de um homem de aparência idêntica à sua, um carregador de malas, o que põe em marcha uma investigação que revela o mistério de sua própria existência. A tensão começa a crescer de forma sutil, mas constante, à medida que a narrativa se adentra no universo paralelo desses dois homens, levando-nos a questionar se Adam e Anthony Claire, o homem que ele encontra, são na verdade duas facetas de uma mesma pessoa, separadas pelo destino.

Villeneuve não se apressa em revelar a verdade, preferindo construir uma atmosfera onde os detalhes se tornam essenciais para decifrar as intersecções entre os dois personagens. Como o diretor polonês Krzysztof Kieślowski fez em “A Dupla Vida de Véronique”, a dualidade entre Adam e Anthony é explorada com precisão, revelando, de forma gradual, que o que parece ser um encontro casual entre dois desconhecidos pode, na verdade, ser o reflexo de uma jornada mais profunda de autoconhecimento. As semelhanças entre os dois homens são evidentes, mas há também diferenças sutis que começam a se destacar à medida que a narrativa avança. Adam e Anthony são apresentados não apenas como homens que compartilham o mesmo rosto, mas como seres humanos presos em uma repetição existencial, incapazes de escapar do ciclo vicioso de suas vidas sem sentido.

Ambos se relacionam com mulheres loiras, que parecem ser um reflexo de suas próprias dificuldades emocionais, mas é a incompreensão mútua que os une de forma mais decisiva. A intrincada trama de Villeneuve, junto com a sensibilidade da adaptação de Javier Gullón, coloca o espectador diante de um dilema filosófico que transcende as respostas óbvias, forçando-o a considerar a verdadeira natureza da identidade e da existência. Como Saramago propôs em seu livro, a história de Adam e Anthony não oferece uma resolução fácil, e, no fim, apenas um sobreviverá para resolver o enigma que permeia a trama. O filme, com sua construção meticulosa, nos desafia a refletir sobre o que é real, sobre a possibilidade de uma realidade compartilhada e, acima de tudo, sobre o mistério do ser, esse tema imortal da metafísica que, mesmo séculos depois de Aristóteles, continua a nos desafiar com perguntas sem resposta.

Filme: O Homem Duplicado
Diretor: Denis Villeneuve
Ano: 2013
Gênero: Mistério/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★