O romance mais bonito dos anos 1990, com Johnny Depp e Marlon Brando, está sob demanda no Prime Video Divulgação / New Line Cinema

O romance mais bonito dos anos 1990, com Johnny Depp e Marlon Brando, está sob demanda no Prime Video

Há histórias que não se sustentam pelo enredo, mas pelo que insinuam por trás de cada gesto, palavra ou silêncio. “Don Juan DeMarco” é uma dessas raridades cinematográficas que desafiam classificações simplistas: não é apenas uma comédia romântica com toques de fantasia, tampouco um drama existencial travestido de fábula. Se trata de uma reflexão lírica — e, por vezes, provocadora — sobre a urgência de preservar o encantamento em uma realidade que, com frequência, sufoca o inusitado em nome da normalidade.  

Na superfície, o filme se ancora em um encontro improvável: um jovem mascarado e eloquente, que alega ser o lendário Don Juan, é internado após tentar se lançar de um prédio. À frente de seu caso está o experiente Dr. Jack Mickler, prestes a encerrar sua carreira como psiquiatra. Mas o que começa como uma avaliação clínica se transforma, gradualmente, em uma travessia interior. À medida que Don Juan — ou o homem que assim se identifica — compartilha seus relatos apaixonados, Mickler se vê confrontado não apenas com as crenças do paciente, mas com as zonas esquecidas de sua própria sensibilidade.

Há uma alquimia rara no modo como o filme entrelaça loucura e lucidez, desejo e rotina, ficção e memória. O que poderia ter sido apenas um retrato caricato de um sedutor delirante torna-se, na verdade, um ensaio sobre a potência transformadora da imaginação. Don Juan, vivido com uma intensidade hipnótica por Johnny Depp, não tenta convencer o mundo de sua identidade — ele a encarna com tal convicção que acaba reconfigurando não apenas a percepção de quem o cerca, mas também os limites entre o que é vivido e o que é sonhado.  

Nesse sentido, o longa não propõe uma fuga da realidade, mas sim um reposicionamento diante dela. Ao invés de ridicularizar o personagem por sua visão romântica do mundo, o filme o trata como um catalisador — alguém que, mesmo na aparente loucura, reacende nos outros o desejo de olhar com assombro para o ordinário. Marlon Brando, no papel do psiquiatra, oferece um contrapeso sereno, mas nunca cético. Sua interpretação vai muito além do papel clínico: ele é, secretamente, um homem à deriva que descobre, por meio da fabulação de outro, um espelho de suas próprias perdas emocionais.

O contraste entre os dois não é um duelo entre razão e delírio, mas uma dança delicada entre o que foi esquecido e o que ainda pode ser resgatado. O filme tem a coragem de sugerir que talvez a maior sanidade esteja em cultivar ilusões que nos devolvam à vida aquilo que ela, aos poucos, retira — o encanto, a intensidade, a capacidade de entrega. Essa perspectiva é sustentada não apenas pelo roteiro sensível, mas pela maneira como a narrativa se recusa a oferecer respostas fáceis. O espectador não é chamado a decifrar se Don Juan está louco ou lúcido, mas sim a questionar o que realmente importa: a veracidade dos fatos ou o efeito que uma história pode exercer sobre aqueles que se permitem escutá-la?

Essa ambiguidade é, também, uma das forças poéticas do filme. Depp, com sua performance sedutora e melancólica, parece nos perguntar o tempo todo: e se o amor não for um dado, mas uma escolha estética? E se cultivar a beleza for, em si, um ato de resistência? Em contrapartida, Brando revela, com gestos contidos e olhares cheios de subtexto, a transformação silenciosa de um homem que redescobre a própria mulher — interpretada com delicadeza por Faye Dunaway — não por meio de um reencontro, mas pela reinterpretação do cotidiano sob nova luz.

O jogo simbólico que o longa propõe é ainda mais instigante quando se considera a história pessoal de seus atores. Brando e Dunaway foram, em suas juventudes, ícones de um erotismo magnético que o tempo — e o próprio cinema — domesticou. Aqui, eles encarnam não apenas personagens, mas memórias vivas de uma sensualidade que ainda pulsa, mesmo que sob a superfície da maturidade. Essa camada metalinguística não é exibida com ostentação, mas emerge com sutileza, como um sussurro entre as entrelinhas: o tempo pode mudar os corpos, mas não apaga a chama de quem já foi tomado por um grande amor.

Recusar o cinismo, hoje, é um gesto quase revolucionário. E “Don Juan DeMarco” o faz com uma ousadia desarmada, apostando no poder regenerador da fantasia sem nunca cair na pieguice. Não se trata de idealizar o amor, mas de reafirmá-lo como um motor vital, uma centelha que mantém o espírito em estado de combustão. O filme não nega a realidade — ele apenas a amplia, sugerindo que talvez sejamos mais autênticos quando ousamos viver aquilo que, à primeira vista, parece absurdo.

É possível que muitos o descartem como leve demais, fantasioso demais, romântico demais. Mas é justamente essa recusa em seguir convenções que o torna especial. Em tempos marcados pelo excesso de ironia e distanciamento emocional, há algo profundamente subversivo em acreditar que uma história de amor — mesmo que inventada — possa curar, iluminar e até salvar. Porque, no fim, talvez sejamos menos definidos por aquilo que é comprovável do que pelo que somos capazes de imaginar. E nesse território fértil da fantasia, “Don Juan DeMarco” permanece, discretamente, como um lembrete eterno de que a vida só vale a pena quando nos permitimos ser tomados por ela como por um grande romance.

Filme: Don Juan DeMarco
Diretor: Jeremy Leven
Ano: 1994
Gênero: Comédia/Drama/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★