É raro encontrar histórias que se renovam sem se trair. Ainda mais incomum é ver uma narrativa que, ao invés de buscar modernidade pela força, escolhe a delicadeza do tempo como aliada. Em “Viver”, o que se tem é menos um remake e mais um eco meticuloso — uma variação interpretativa que respeita a fonte sem lhe dever obediência servil. Oliver Hermanus compreende que o essencial de uma história não reside em sua localização geográfica ou temporal, mas no modo como atravessa a existência humana com precisão cirúrgica. Ao transportar a espinha dorsal do clássico de Kurosawa para uma Londres enevoada e melancólica, e fazer isso sob o olhar envelhecido e contemplativo de Jamie D. Ramsay, Hermanus não apenas atualiza uma fábula existencial — ele investiga, com rara sobriedade, o que ainda pulsa sob os escombros de uma vida funcionalmente desperdiçada.
No centro dessa elegia contida está Williams, burocrata irrepreensível, espécie de relíquia institucional que opera com a eficiência de um relógio já fora do tempo. Ao receber o diagnóstico de um câncer terminal, a reação não é grandiosa nem melodramática: ele continua a existir, quase por inércia, agarrado aos gestos que definem sua rotina há décadas. É no contraste entre a monotonia persistente e a sentença de morte silenciosa que o roteiro de Kazuo Ishiguro finca raízes. Em vez de converter Williams em herói de última hora ou em epítome de redenção, o filme opta por explorar sua hesitação, sua incapacidade de processar as transformações abruptas do pós-guerra, bem como sua resistência em reconhecer que a sociedade já gira num ritmo que ele não compreende — tampouco deseja compreender.
O escritório onde atua, repleto de jovens energéticos e procedimentos mecânicos, funciona como uma vitrine de tudo que lhe escapa: linguagem, desejos, urgências. E, ao se aproximar da colega Margaret Harris, ele não busca exatamente consolo, mas uma âncora emocional que o reconecte ao que há muito esqueceu: o impulso de estar vivo de forma autêntica. Margaret, com sua leveza intuitiva e vitalidade sem afetação, ocupa a narrativa como uma antítese de Williams — não porque viva de modo espalhafatoso, mas porque encara a existência com curiosidade honesta, algo que ele mesmo nunca se permitiu. A atuação de Aimee Lou Wood é de uma inteligência rara: ela não interpreta uma salvadora, mas uma jovem comum cuja bondade genuína se torna, paradoxalmente, revolucionária.
Esse encontro entre dois mundos — não em choque, mas em lenta colisão — reconfigura o tom do filme. Quando Williams finalmente revela à jovem sua condição, o momento não é de catarse, mas de escuta. Ele descobre nela um espaço sem julgamento, enquanto ela o confronta com uma franqueza pueril que não o exime, mas o desafia. É nesse equilíbrio entre melancolia e esperança que o filme encontra sua tessitura moral. Margaret não transforma Williams num novo homem, mas o impulsiona a realizar um gesto que, embora pequeno no escopo administrativo, assume uma dimensão de eternidade por representar, enfim, um ato de presença no mundo.
“Viver”, neste novo arranjo, é menos sobre a finitude e mais sobre a possibilidade do instante significativo. Ao reverenciar Kurosawa — que, por sua vez, reinterpretava Tolstói — Hermanus reafirma que revisitar o passado só vale a pena quando se aceita o risco de reescrevê-lo com voz própria. A beleza do filme reside justamente nisso: sua recusa em dramatizar a morte e seu empenho em valorizar os momentos quase invisíveis onde a vida, por fim, se insinua.
★★★★★★★★★★