Há quem almeje a eternidade como quem busca um milagre, mas Pedro Almodóvar parece desejar algo mais raro: o enfrentamento sem atenuantes daquilo que nos limita — o fim. Em sua mais recente investida narrativa, o diretor espanhol recusa a concessão emocional fácil e propõe, com a ousadia que o consagrou, uma travessia incômoda e delicadamente brutal pelas margens da existência. “O Quarto ao Lado” é o palco onde ele põe em jogo não apenas a decadência física e a urgência da morte, mas, sobretudo, a responsabilidade moral de quem decide como se despedir. Inspirando-se em Sigrid Nunez, Almodóvar encena uma agonia lúcida, emoldurada por tons saturados e diálogos incisivos, onde a escolha de partir antes da derrota ganha contornos de gesto político e poético.
Ingrid, autora consagrada e ex-correspondente de guerra, organiza com precisão a própria saída de cena. Seu novo livro, um tratado pessoal sobre a finitude, encontra eco num público ávido por reflexões sobre a morte, como se ela mesma fosse o oráculo do que está por vir. Essa aura de controle absoluto, porém, rui ao reencontrar Martha, uma figura do passado que irrompe como fenda emocional em sua racionalidade blindada. O reencontro não dramatiza a ruptura: Almodóvar opta pela suavidade, como se ambas sempre houvessem habitado o mesmo tempo, o mesmo corpo, o mesmo trauma. E talvez tenham. A cumplicidade que se reativa sugere menos um laço nostálgico do que uma simbiose nunca desfeita.
Esse embaralhamento identitário é conduzido com rigor e sensibilidade por Julianne Moore e Tilda Swinton, que orbitam uma mesma dor com registros complementares. A potência de suas performances nos aproxima de filmes que exploraram, com igual densidade, a dualidade feminina como reflexo e espelho, entre eles os universos esotéricos de Kieślowski, a subversão do sagrado em Buñuel e o silêncio corrosivo de Bergman. Como nas obras desses mestres, aqui também as fronteiras do eu se diluem: Ingrid e Martha se confundem, completam-se, espiam-se como se compartilhassem uma biografia emocional.
Martha, ciente da proximidade do colapso, decide assumir o comando do próprio desaparecimento. E o faz com um pragmatismo inquietante: uma pílula adquirida pela dark web, um plano logístico bem delineado e a necessidade de uma testemunha confiável para legalizar sua escolha. Ingrid aceita não como cúmplice, mas como igual. Não há heroísmo, tampouco martírio — há apenas a consciência plena de que o sofrimento não é uma virtude em si e que, às vezes, morrer é o único gesto de liberdade possível. Almodóvar, com sua verve elegante e melancólica, não dramatiza a escolha: ele a ilumina.
“O Quarto ao Lado” é o primeiro longa-metragem em inglês do cineasta após a breve experiência em “Estranha Forma de Vida”. Mas a mudança de idioma em nada suaviza sua assinatura autoral: ela resiste intacta no uso vibrante das cores, na composição visual meticulosa e na ironia afiada que atravessa até os diálogos mais ternos. As referências não são exibicionistas; surgem como matéria orgânica da história — da alusão direta à jornalista Martha Gellhorn à evocação de Joyce e Woolf, passando pelo inconfundível lirismo de Huston em “Os Vivos e os Mortos”. A cultura, aqui, não é ornamento: é trincheira contra a anulação do indivíduo.
É no tribunal improvisado da memória, onde Martha é julgada depois de sua partida, que o filme desvela sua maior coragem: questionar o que permanece após o fim. Há uma serenidade quase insolente em sua postura perante a morte, como se dissesse que o corpo cessa, mas o gesto persiste. Almodóvar não apregoa respostas. Ele insinua, com arte rarefeita, que cada existência é um enigma a ser encerrado com autenticidade — sem delegações, sem melodrama, sem absolvição. Não há um modelo ideal para morrer. E talvez o grande escândalo do filme seja justamente lembrar que viver, também, jamais foi uma questão de fórmula.
★★★★★★★★★★