Há um tipo peculiar de desordem que só o amor é capaz de gerar. Não a paixão vertiginosa dos começos, tampouco o apego maduro dos anos — mas a lenta implosão que acontece quando duas pessoas, antes cúmplices, precisam se transformar em algo diferente para dar conta do inédito: o papel de pais. A chegada dos filhos inaugura uma era de pequenas renúncias, onde os prazeres individuais são arquivados em nome de uma entidade frágil e exigente, que cresce desafiando fronteiras invisíveis. É nesse conflito entre a necessidade de zelar e a inevitável frustração de não poder prover tudo que o vínculo se contorce, e por vezes, se rompe. Resta aos adultos tentarem, sem roteiro, manter algo de pé — mesmo que o chão sob eles se mova constantemente.
Para Gabriel Gaitán, o abalo não foi gradual, mas sísmico. Um telefonema, um nome, um menino. Benito. Um filho cuja existência não constava nem nos arquivos da memória seletiva, nem nas gavetas do futuro. Gabriel — ou Gallo, como o chamam — não é apenas um viciado em trabalho; ele é alguém que organizou a vida em torno de tudo que pudesse evitar vínculos. A paternidade, portanto, não se anuncia a ele com ternura ou tempo, mas como uma colisão frontal. Salvador Espinosa, o diretor, compreende a delicadeza dessa tragédia íntima e aposta numa mistura perigosa de tons: cenas que roçam o sentimentalismo sem se render a ele, seguidas por explosões de humor que flertam com o absurdo, como se a única forma de dar conta da dor fosse desmontando-a com riso.
Espinosa parece interessado menos em retratar a paternidade ideal e mais em desnudar o espanto de quem chega atrasado ao próprio papel. O que seria de uma mãe que, depois de dedicar uma vida inteira ao filho, acorda um dia e se pergunta quem ela é sem ele? E o que dizer de um pai que só descobre o filho quando este já tem plena consciência de si, de suas perguntas e daquilo que lhe falta? O dilema de Gallo não reside apenas em recuperar o tempo perdido, mas em decidir o que fazer com a culpa por não ter estado lá. A ironia cruel é que ele nunca teve chance de errar como pai — e ainda assim precisa lidar com as consequências desse erro involuntário.
O roteiro de Tato Alexander foge do óbvio ao evitar atalhos emocionais. Antes de empurrar o protagonista em direção ao vínculo, ele reconstitui o antes — o modo de vida que Gabriel levava, as estruturas emocionais que ele construiu para evitar a intimidade, as escolhas que o blindaram da dor e, por tabela, do afeto. É somente após essa desconstrução silenciosa que o filme propõe sua virada: uma busca quase detectivesca, em que pai e filho percorrem, juntos, os rastros de uma mulher que deixou pistas esparsas e verdades incompletas. Alicia Uliarte, a mãe ausente, torna-se um enigma compartilhado. Sua ausência não é apenas literal: ela paira como sombra sobre tudo que Benito precisa entender — e que Gallo tenta decifrar, talvez mais por necessidade de redenção do que por amor.
A força de “O Melhor do Mundo” reside na economia de excessos e na precisão emocional. Michel Brown e Daniel Abrego entregam uma dinâmica que dispensa floreios: são olhares e silêncios que sustentam o arco dramático sem necessidade de discursos explicativos. E talvez por isso funcione tão bem. O filme não propõe respostas, nem reconciliações ideais. Ele apenas lança a pergunta — o que se pode fazer com o que restou? — e a acompanha com honestidade até o último frame. Um gesto simples, porém raro: saber a hora certa de parar. E fazê-lo com a dignidade de quem entendeu que, às vezes, o suficiente é tudo que se pode oferecer.
★★★★★★★★★★