Toda a história do cinema — e, por extensão, a da própria cultura pop — seria justo o contrário do que se tem hoje se super-heróis fossem dotados de um salvo-conduto para cometer barbaridades em nome da lei e da ordem. Qualquer um que já tenha sido criança sabe perfeitamente que esses indivíduos, meio humanos, meio fantásticos, emulando os atributos de morcegos, aranhas, felinos ou peixes, gastam um bom pedaço de suas vidas nem tão extraordinárias tentando fugir de traumas que nem eles mesmos entendem, e, dessa forma, enredos como o de “Bloodshot” passam a fazer todo sentido.
O filme de David S.F. Wilson assume-se meio envergonhadamente uma cópia de produções a exemplo de “O Exterminador do Futuro” (1984), “Robocop — O Policial do Futuro” (1987) e “O Vingador do Futuro” (1990) sem nada do, para não perder a piada, futuro e tampouco do talento de James Cameron, Paul Verhoeven ou Len Wiseman. Baseado nas histórias em quadrinhos de Don Perlin (1929-2024), Bob Layton e Kevin VanHook publicadas pela Valiant Comics, o roteiro de Eric Heisserer e Jeff Wadlow atinge, com algum esforço, os fãs já iniciados e compassivos, aqueles que perdoam os muitos deslizes do texto em nome do entretenimento.
Super-heróis de correntes as mais variadas, dos mais solares ao mais chegados ao mundo das trevas, têm um ponto em comum: lutam contra as memórias de uma infância triste, que, claro, ficam naquele eterno vaivém que os predispõem a se lançar a empreitadas cada vez mais cheias de riscos, quiçá até suicidas, visando não somente o bem da humanidade, mas um acerto de contas com sua própria vida. O caso de Ray Garrison, contudo, é diferente. Garrison, um militar com algumas guerras no currículo, volta para casa depois de uma missão bem-sucedida, e passa uma noite com a esposa, Gina, de Tallulah Riley, para ser emboscado e morto pouco depois.
Até aí, nada de novo no fronte, e Wilson leva a introdução a contento, conferindo destaque também a Martin Axe, o vilão caricato interpretado por Toby Kebbell. Se conservasse o pendor típico dos filmes de ação e preferisse continuar destrinchando a vida de Garrison até sua transformação no personagem-título, “Bloodshot” erraria menos; quando tenta ser engraçado e põe Axe cantando “Psycho Killer” (1977), o hino do new wave do Talking Heads, pouco antes de torturar o mocinho, chega-se ao fundo do poço, de maneira tão categórica que nem Guy Pearce na pele do doutorEmil Harting, o verdadeiro antagonista, salva. Não há muito mais a ser dito, e a atuação sempre limitada de Vin Diesel cai como uma luva numa narrativa que camufla suas deficiências com efeitos especiais.
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