Obra-prima de David Fincher, com Brad Pitt e Morgan Freeman, vai deixar cada cena grudada para sempre na sua cabeça — na Max Divulgação / Juno Pix

Obra-prima de David Fincher, com Brad Pitt e Morgan Freeman, vai deixar cada cena grudada para sempre na sua cabeça — na Max

Em uma metrópole sem nome, eternamente encoberta por nuvens espessas e açoitada por uma chuva que nunca cessa, o tempo não flui — ele apodrece. A atmosfera é de decomposição moral, onde o concreto encharcado parece pulsar com a angústia dos que ali sobrevivem. É nesse purgatório urbano que “Seven: Os Sete Crimes Capitais” se desenrola, como uma liturgia sombria da decadência civilizatória. Às vésperas da aposentadoria, o detetive William Somerset (Morgan Freeman) é empurrado para um último caso — e, com ele, para um último confronto com o horror. Seu parceiro, David Mills (Brad Pitt), recém-chegado, ainda carrega uma crença juvenil na justiça, um resquício de idealismo em um mundo que já perdeu a vergonha de exibir suas chagas. Juntos, são lançados em uma série de assassinatos ritualizados que tomam por molde os sete pecados capitais, não como alegoria, mas como sentença.

David Fincher não dirige apenas um thriller — ele ergue um monumento fúnebre à falência ética do homem moderno. A câmera, inquieta e sombria, mergulha os personagens em um cenário que parece conspirar contra qualquer lampejo de redenção. A cidade é uma entidade viva, apática e cruel, cuja única constância é a decadência. Não há sol, não há pureza, não há fuga. A ausência deliberada de alívio — seja ele humorístico, emocional ou espiritual — não é um artifício narrativo, mas uma afirmação filosófica: neste universo, o mal não é desvio; é o padrão.

Fincher recusa os confortos tradicionais da narrativa policial. Em vez disso, conduz o espectador por uma jornada em que a lógica do suspense cede lugar ao desamparo da tragédia. O assassino — interpretado com aterradora serenidade por Kevin Spacey — não é um psicopata qualquer, mas um arauto do colapso, um moralista macabro que se vê como instrumento divino em um mundo que já abandonou Deus. Sua lógica não é insana — é insuportavelmente coerente. Ele não mata por prazer, mas para revelar, com precisão cirúrgica, a podridão envernizada da humanidade.

Esse embate extrapola o campo da investigação e se converte em conflito ideológico. Somerset é a sabedoria amarga de quem viu demais e já não espera salvação. Mills, por outro lado, é a fúria ingênua de quem ainda crê que o mundo pode ser consertado a golpes de justiça. Juntos, formam um díptico moral dilacerado, cujas convicções serão testadas até o limite. À medida que o caso avança, ambos são arrastados para o centro de um vórtice ético, onde a racionalidade se dissolve e a esperança se torna uma forma de negação. A armadilha final — cruel, genial, devastadora — não é apenas o clímax da narrativa, mas o colapso definitivo de qualquer ilusão de controle.

“Seven” desmonta, com meticulosidade quase teológica, a estrutura clássica do policial moderno. O que se inicia como uma investigação ganha contornos de apocalipse íntimo, de tragédia metafísica. A influência de obras como “O Sétimo Selo”, de Bergman, é evidente não apenas na atmosfera, mas na angústia existencial que emana de cada cena. Não há heróis, não há catarse, não há justiça — apenas o reconhecimento de que o mal não precisa vencer, pois ele já venceu silenciosamente, diluindo-se nas rotinas, nos gestos, nos silêncios.

Cada assassinato, meticulosamente encenado, é um capítulo de uma liturgia do horror que visa não apenas punir, mas revelar. O assassino não age como agente do caos, mas como executor de uma ordem terrível, ininteligível e, por isso mesmo, irrefutável. O filme obriga o espectador a olhar para esse abismo e a reconhecer sua familiaridade. O verdadeiro desconforto não reside nas imagens brutais, mas na constatação de que o mundo representado ali — sombrio, injusto, irredimível — é menos uma distopia e mais um espelho.

Resta apenas a ruína. Somerset, o cético resignado, encontra nas palavras de Hemingway uma amarga tentativa de consolo: “O mundo é um bom lugar e vale a pena lutar por ele. Concordo com a segunda parte”. Não é uma mensagem de esperança, mas um epitáfio. O bem, em “Seven”, não triunfa — ele sobrevive, precariamente, pela insistência de não desaparecer por completo. E talvez, nesse cenário onde nada floresce, essa persistência seja o último ato de dignidade possível.

“Seven” não é apenas um marco do cinema noir moderno — é uma meditação implacável sobre a falência moral da humanidade. Um filme que não busca entreter, mas confrontar. Que não oferece respostas, apenas perguntas que ecoam como acusações. Em uma indústria cada vez mais pautada pela previsibilidade e pelo conforto emocional, a obra de Fincher permanece como um grito desesperado — sombrio, doloroso e absolutamente necessário.

Filme: Seven — Os Sete Crimes Capitais
Diretor: David Fincher
Ano: 1995
Gênero: Crime/Drama/Mistério
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★