Gene Hackman e John Cusack em thriller de tribunal baseado em best seller de John Grisham, na Netflix Divulgação / New Regency Productions

Gene Hackman e John Cusack em thriller de tribunal baseado em best seller de John Grisham, na Netflix

Há filmes que permanecem vivos não pelo espetáculo visual ou pela pirotecnia narrativa, mas porque têm a coragem de explorar os interstícios onde a justiça se corrompe e o poder se dissimula. “O Júri”, dirigido por Gary Fleder e baseado no romance homônimo de John Grisham, é exatamente esse tipo de cinema — não aquele que nos oferece respostas bobas, mas que expõe a engrenagem oculta por trás do veredito. Lançado em 2003, o filme não apenas revisita os clichês do drama de tribunal: ele os decompõe, desmonta e reconstrói, revelando o tribunal como um palco onde a verdade é encenada conforme interesses que raramente aparecem nos autos. Em uma América ainda marcada pelas feridas abertas do 11 de Setembro, onde desconfiança e paranoia se infiltravam nas instituições, “O Júri” surge como um artefato cultural que não busca consolar — prefere inquietar.

A escolha de trocar o tema original do tabagismo por um processo contra uma fabricante de armas é mais do que uma atualização narrativa: é uma guinada provocativa. Ao deslocar o eixo da acusação para um caso envolvendo um massacre armado, o filme assume uma postura incisiva diante de um dilema moral que fere a espinha dorsal da sociedade americana — a devoção à liberdade individual, especialmente no que diz respeito à posse de armas, versus o direito à segurança coletiva. Esse gesto de reconfiguração dramática não só intensifica o impacto temático, como também reposiciona o espectador diante de um embate ético em que não há espaço para zonas cinzentas confortáveis. Cada personagem se vê compelido a operar dentro de sistemas onde convicções pessoais cedem lugar a estratégias de persuasão e controle.

O que distingue “O Júri” de outros filmes de tribunal é sua recusa em se render a arquétipos estáveis. O elenco, cuidadosamente escalado, contribui para essa ambiguidade. Gene Hackman, como o maquiavélico Rankin Fitch, representa mais do que um vilão tradicional: ele encarna a sofisticação amoral da manipulação corporativa, aquela que se esconde atrás de gráficos, dossiês e algoritmos. Seu controle obsessivo sobre os jurados transforma o julgamento em um experimento sociopolítico. Do outro lado, Rachel Weisz imprime à sua personagem uma força silenciosa, uma astúcia que nunca recorre ao histrionismo. Já John Cusack, como Nicholas Easter, se torna o vértice da dúvida: seu jogo duplo — ora cúmplice, ora sabotador — impõe ao público o papel de jurado moral, forçando-o a confrontar suas próprias convicções sobre justiça.

O júri, tradicionalmente retratado como o núcleo ético da justiça democrática, é aqui diluído em funcionalidade. Diferente do livro de Grisham, que individualiza cada jurado com histórias próprias, o filme opta por silenciar essas biografias e transformá-los em peças de um tabuleiro que desconhecem. Essa decisão estética e política é tudo menos neutra. Ao esvaziar os jurados de identidade, o filme comenta — de forma crítica — o processo de desumanização das instituições contemporâneas: o sistema prefere engrenagens previsíveis a sujeitos complexos. O julgamento, assim, perde seu caráter deliberativo e se aproxima de uma simulação — ensaiada, coreografada, rentável.

A mise-en-scène de Fleder acentua essa artificialidade calculada. A câmera raramente adota uma perspectiva neutra: ora observa por entre frestas, ora se posiciona como se estivesse espionando os personagens. A sensação é de constante vigilância — e não por acaso. O espaço do tribunal é filmado menos como um templo da razão e mais como um campo de batalha em que a informação vale mais que a argumentação, e a percepção importa mais que a verdade. A trilha sonora quase imperceptível opera como um sussurro de tensão, uma respiração contida que nunca se alivia. Tudo sugere que o veredito — qualquer que seja — é apenas o desfecho de uma narrativa escrita nos bastidores.

Mas talvez o aspecto mais inquietante de “O Júri” seja sua denúncia silenciosa da espetacularização da justiça. O que se julga no tribunal não é apenas um crime, mas a própria capacidade de manipular versões da realidade. A argumentação jurídica é substituída por táticas de marketing comportamental, e a verdade, nesse cenário, deixa de ser descoberta: ela é construída. O filme, então, nos confronta com uma pergunta incômoda: se a justiça depende da persuasão — e não da comprovação —, o que a diferencia da publicidade? Ou, indo além: em quantas outras esferas da vida pública a verdade foi moldada por quem detinha os meios de contá-la?

“O Júri” não se encerra com o martelar de um veredito. Ele reverbera. Ao invés de oferecer alívio ou catarse, lança o espectador de volta ao mundo real com uma pergunta ecoando em sua consciência: quando deixamos de buscar justiça e começamos a consumir versões convincentes dela? Essa reflexão final, que o filme apenas insinua sem verbalizar, talvez seja seu maior triunfo — aquele que transforma uma simples trama judicial em uma crítica visceral à era da pós-verdade, onde a manipulação não apenas venceu, mas se naturalizou.

Filme: O Júri
Diretor: Gary Fleder
Ano: 2003
Gênero: Crime/Drama/Thriller
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★