Há quem tenha o desejo e até a aspiração de viver para sempre. Pedro Almodóvar, o príncipe do melodrama deste século, exige muito mais do que alguns podem dar, e por essa razão nem todos conseguem se identificar com sua obra. Necessita-se paciência para se gostar de Almodóvar, uma paciência de anos, e assim mesmo o diretor nunca será uma unanimidade, sem dúvida um prêmio para um artista da sua grandeza. Mais uma vez, Almodóvar prova estar afinado com seu tempo ao trazer à superfície outro rol de polêmicas, embaladas, como sói acontecer, em cores berrantes e luminosas, em “O Quarto ao Lado”, uma forçosa reflexão acerca da finitude que persegue-nos a todos. Maviosamente, bem ao seu estilo, o diretor extrai beleza de situações trágicas ao mirar uma ex-correspondente de guerra morrendo de um linfoma que decide dar ela mesma cabo do que sobra de sua existência, afinal, “o câncer não poderá vencê-la se ela se entregar primeiro”. Inspirado em “O que Você Está Enfrentando” (2020), romance da americana Sigrid Nunez, o roteiro de Almodóvar é um eterno vaivém de cenas marcadas pela doçura e uma avalanche da realidade dolorosa de que alguém tenta livrar-se pagando com a própria vida.
Tudo parece correr muitíssimo bem para Ingrid. A sessão de autógrafos de seu novo livro, um compêndio de suas impressões sobre a morte, está cheia de leitores e ela só recebe elogios. Nada poderia ser mais satisfatório e mais emblemático de seu sucesso, até saber que Martha, uma velha amiga dos tempos de colégio, está morrendo. Esse choque de realidade, da teoria para as coisas como elas são, se dá, admiravelmente, de um jeito suave, e têm-se a sensação de que Ingrid e Martha sempre estiveram juntas.
Elas às vezes até dão a entender que são a mesma pessoa, um trunfo da interpretação cuidadosa de Julianne Moore e Tilda Swinton que leva “O Quarto ao Lado” para perto de obras-primas do cinema do século 20 a exemplo de A Dupla Vida de Véronique (1991), dirigido por Krzysztof Kieślowski (1941-1996); Viridiana” (1961), levado à tela por Luis Buñuel; ou “Quando Duas Mulheres Pecam” (1966), a cargo de Ingmar Bergman (1918-2007), uma vez que em todas elas fica patente alguma intersecção, ainda que difusa, entre as escolhas e os destinos dessas mulheres. Quando o vínculo é efetivamente refeito, Martha comunica que vai cometer eutanásia por sua própria conta, mediante uma pílula que adquiriu via dark web, e que precisa de alguém de confiança para tomar as providências cabíveis. Ingrid, claro, aceita.
A partir desse ponto, o filme, o primeiro longa de Almodóvar em língua inglesa depois do experimental (e lindo) “Estranha Forma de Vida” (2023), é uma variação das emoções de Martha e Ingrid, duas mulheres cultas, sofisticadas e destemidas, mas com sortes diversas. É um deleite prestar atenção às falas das personagens, plenas de referências ao que de melhor a civilização produziu nos últimos cento e poucos anos, a começar por Martha Gellhorn (1908-1998), claramente homenageada pelo diretor na anti-heroína de Swinton; “Os Vivos e os Mortos” (1987), de John Huston (1906-1987), baseado no conto “Os Mortos” (1914), de James Joyce (1882-1941); Giles Lytton Strachey (1880-1932) e Dora Carrington (1893-1932), do Círculo de Bloomsbury de Virginia Woolf (1882-1941). A sua maneira tão peculiar, Almodóvar diz com “O Quarto ao Lado” que a arte redime-nos a todos e que é um privilégio ser um operário nesse mundinho abafado e incompreendido, como também afirma numa das últimas sequências, quando Martha é julgada depois de morta. Todavia, como féretros comportam apenas um corpo, cada qual que saiba viver e morrer como lhe apetece.
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